domingo, 30 de setembro de 2012

Afinal, o que é a tal da sustentabilidade?


São tantos os usos e desusos do termo sustentabilidade que quando vejo escrita a palavra, logo procuro identificar a corrente ideológica e a maneira de pensar de quem a usa. Fico confuso, na verdade pasmo, que esta palavra (ou ideia-força como prefere minha orientadora de doutorado), seja usada por gente que propõe temas verdadeiramente alternativos, sem maiores aprofundamentos. Posso dizer a verdade? Usei o termo em meu doutorado, mas náo gosto dele. Acho obsoleto e já "engolido" e "digerido" pelo sistema. E transformado em que? Na mesma coisa que tudo que é engolido e digerido. 
Começo então uma série de 4 artigos, buscando oferecer uma visão ampla e crítica de como o termo surgiu e é usado e corrompido.
Afinal, o que é a tal da sustentabilidade?
 Sustentabilidade é um conceito amplo, sobre o qual há muitas controvérsias (SÖDERBAUM, 2000; 2008). O conceito do tripple bottom line (tripé da sustentabilidade), cunhado por Elkington (1998) se tornou dominante no sentido de capturar os esforços de países e organizações para uma atuação voltada para reflexões sobre o capital humano e capital natural, além de um capital econômico. Tornou-se expressão também largamente utilizada para a elaboração de padrões de relatórios organizacionais  e nacionais sobre sustentabilidade e para medir a chamada ‘pegada ecológica’.
   A compreensão de sustentabilidade baseada apenas no triple bottomline pode ser reducionista. Söderbaum (2008), por exemplo, elenca seis diferentes dimensões sobre as quais políticas, programas ou projetos de sustentabilidade podem ter efeito: (1) ecológicas ou ambientais; (2) da saúde humana; (3) sociais aqui consideradas inclusive as ligadas a direitos humanos, redução ou aumento da pobreza, justiça, etc.; (4) culturais; (5) estéticas; e (6) monetárias e financeiras. Além destas acredita o autor sueco haver outras três mais amplas ligadas ao conhecimento e experiência ganhos, ou ao poder, ideologia e ética e ainda a questões legais e institucionais.
  Mesmo controverso e disputado por diferentes ideologias, o termo sustentabilidade ganhou ao longo do tempo importância e abrangência. Em termos de definições, o ponto de partida neste trabalho é um conceito de sustentabilidade abrangente, como formulado por Viedermann (1994, p. 5): 
    Sustentabilidade é um processo participativo que cria e persegue uma visão de comunidade que respeita e faz uso prudente de todos os recursos – naturais, humanos, criados pelo homem, sociais, culturais, científicos etc. Sustentabilidade procura garantir, na medida do possível, que as gerações presentes podem obter um determinado grau de segurança econômica e tornar real a democracia e a participação popular no controle de suas comunidades, mantendo ao mesmo tempo a integridade dos sistemas ecológicos dos quais toda a vida e toda a produção dependem. Assumindo também responsabilidade em garantir e fornecer todos os recursos necessários para que as gerações futuras possam realizar suas visões, na esperança de que elas tenham a sabedoria e inteligência de usar estes recursos de forma apropriada.   
  Este conceito pode parecer utópico e vazio em termos de aplicação prática. No entanto, também pode parecer utópico conversar seriamente sobre sustentabilidade com determinadas organizações nas quais questões éticas são constantemente desrespeitadas. Como afirma Santos (2007, p. 332), o único caminho para pensar sobre futuro parece ser a utopia. Por utopia, entende o sociólogo português, explorar novas possibilidades humanas e novas formas de vontade e “[...] a oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor por que vale à pena lutar e à que a humanidade tem direito” (SANTOS, 2007, p. 332).O autor português lembra que, apesar da urgência de soluções, este pensamento utópico é hoje um pensamento desacreditado, no embate do que chama o paradigma ecossocialista com o paradigma capitalista expansionista.  
   Explorar a imaginação e novas possibilidades de ação simples e o respeito às ideias das comunidades envolvidas é um processo possível, por meio do caminho participativo e prudente apregoado por Viedermann (1994) acima. OU seja, a ideia por trás da definidação não é, portanto, a de adotar modelos prontos de sustentabilidade e indicadores pré-fabricados (ISE`s etc.), mas construí-los social e localmente.     
   Por trás das dificuldades em definir sustentabilidade se escondem disputas ideológicas e batalhas paradigmáticas, contradições e paradoxos que vão além de diferentes visões econômicas e de embates entre forças políticas de ‘esquerda’ e de ‘direita’. Sustentabilidade tem, diferentes significados para diferentes pessoas, grupos de pessoas, movimentos sociais e organizações, conforme afirma Banerjee (2003).  
  O significado do termo sustentabilidade foi se ampliando ao longo do tempo. No final do século passado as preocupações com o assunto ainda estavam diretamente ligadas aos esforços para conter a progressiva deterioração do meio ambiente físico, causada pelo crescimento econômico. Por exemplo, na compilação de trabalhos editada pela Harvard Business Review, em 2000, com o título Business and the Environment, com escritos que remontam a 1991. Nesta obra a palavra sustentabilidade (sustainability) aparece no título de dois artigos e o termo meio-ambiente (environment) aparece quase sempre como sinônimo para natureza (MAGRETTA, 2000; HART, 2000).
  No artigo de Hart (2000) acima mencionado, se espelha uma relação de causa-efeito bastante comum entre os defensores de um desenvolvimento sustentável no hemisfério norte. Segundo o autor e consultor: “[...] as raízes do problema - crescimento explosivo da população e rápido desenvolvimento econômico nas economias emergentes - são assuntos políticos e sociais que excedem o mandato e capacidade de qualquer corporação”.  Esta maneira de pensar sobre causas e consequencias da questão ambiental pode ser observada também no mundo das relações internacionais. Encontra-se, de um lado, a posição dos países desenvolvidos, de que os grandes problemas do mundo atual seriam ligados a estes pontos: crescimento explosivo da população e rápido desenvolvimento (leia-se crescimento) econômico nas economias emergentes. Isto provocaria fortes pressões por energia, consumo de bens duráveis e não duráveis, a poluição de rios e mares na etapa de produção e na eliminação de lixo doméstico. Do outro lado, a posição dos países emergentes, expressa, por exemplo, na I Conferência Internacional sobre o Petróleo e Ambiente, da qual participaram trinta países em via de desenvolvimento. Segundo a posição defendida pelos países mais pobres, são os países desenvolvidos e industrializados que devem assumir os custos do tratamento dos problemas de poluição por serem eles "que estão na origem da poluição do ambiente desde a Revolução Industrial, há centenas de anos, que lhes permitiu desenvolver-se" (GHANEM, 2008, p. 1). Além disso, a posição defendida pelos países em desenvolvimento é de que os países ricos "recusam-se a assumir a responsabilidade de poluidores, predispondo-se apenas a contribuir na luta contra a poluição" (ibid). 
  Independente de questões ligadas a países ricos e pobres, Shrivastava (1995) propõe que a responsabilidade seja dividida entre três partes: Governo, consumidores e empresas. Os questionamentos feitos pelo sobre o papel das empresas partem de uma assunção que poderia ser considerada falaciosa. A de que unicamente empresas teriam a obrigação de proporcionar ‘amenidades básicas’ (basical amenities) a 11 bilhões de pessoas, referindo-se o autor a produtos de consumo e serviços. O autor reconhece que a consequência da manutenção de níveis de consumo e dos atuais padrões de produção é insuportável para o planeta e levaria a uma degradação inimaginável, com o consumo de matérias-primas e produtos e a gigantesca geração de resíduos. Não se observa, no entanto, nenhum tipo de crítica reflexiva sobre até que ponto estas mesmas empresas convencem o consumidor sobre o que seriam níveis de ‘conforto mínimo’ e o que são ‘produtos essenciais’. Esta reflexão é necessária pois ações governamentais teriam seus limites, bem como a ação de consumidores individuais, exigindo que as empresas também se engajassem voluntariamente em ações, visando cenários futuros menos sombrios.
   De acordo com esta posição pessoas físicas seriam, portanto, também chamadas a assumir alguma postura ideológica no sentido de Söderbaum (2000) para enfrentar a crise ambiental e climática. Isto desafia a racionalidade fria da economia, em que mercados são vistos apenas como ambientes neutros em que todos os atores dispõe de todas as informações para tomar suas decisões. As incertezas mencionadas por Beck (1992, 2007) sobre possíveis cenários futuros levam cada um a agir segundo sua postura ideológica, segundo meios que imagina para atingir determinados fins desejados, inclusive em relação à sociedade e ao planeta.
   Sneddon (2000) argumenta que as lutas paradigmáticas e geopolíticas até aqui mencionadas, levaram ao rápido aumento do debate sobre sustentabilidade após o Relatório Bruntland (UN, 1987). A partir deste incremento no debate se multiplicaram posições discursivas ou tendências em relação à sustentabilidade, que se transformavam ou não em práticas e ações no campo organizacional.  
  A primeira tendência apontada por Sneddon (2000), alinhada com a posição tecnocêntrica, surge da dimensão unicamente ambiental da sustentabilidade antes mencionada. É uma preocupação e tomada de consciência com a óbvia rápida deterioração em grande escala do meio ambiente físico. A partir desta tendência se desenvolveu uma busca acelerada por inovações tecnológicas ‘verdes’ radicais. 
  Uma segunda tendência discursiva e de ação, também fruto do tecnocentrismo é apontada por Sneddon (2000). Esta, mais ideológica do que de ação profunda, propunha-se a manter a sustentabilidade econômica dos negócios de forma ambígua. Isto se daria pela geração de conhecimentos de propaganda e comunicação, e práticas daí decorrentes, que permitissem ‘reembalar’ os procedimentos de praxe de exploração dos recursos e do ser humano, dando-lhes uma ‘fachada verde’, o chamado greenwashing. Este fenômeno de proteção contra ações dos indivíduos e das coletividades e, por outro lado, a luta contra ele por parte de indivíduos e organizações de defesa dos interesses do consumidor e dos direitos civis deu origem dialeticamente a novas tensões. Fez com que corporações fossem constantemente acusadas por grupos de pressão de enganar consumidores e confrontadas com alegações de uma falsa responsabilidade social e ambiental, colocando sob suspeita sua pretensa integridade ‘holística’.
    Existe ainda uma terceira tendência segundo Sneddon (2000), que é aquela com a qual este trabalho se alinha. Esta tendência entende a sustentabilidade como um problema multicausal, paradoxal, ambíguo e complexo e que exige, portanto, uma abordagem, necessariamente, inter e multidisciplinar e que evite dualismos tradicionais (O´RIORDAN, 1993). Uma vez que é um considerado tópico de estudos por excelência interdisciplinar, requer a quebra de paradigmas e a construção de um conhecimento vivo, em que aspectos da ciência tradicional se unam a formas locais de conhecimento (MURDOCH; CLARK, 1994).
  A seguir, em mais três artigos serão apresentados aspectos do tema sustentabilidade, divididos segundo o chamado tripé da sustentabilidade, mas o desafiando.
Referências
BANERJEE,  S. B. Who Sustains Whose Development? Sustainable  Development and the Reinvention of Nature, Organization Studies, v. 24, n.1, p. 143–180, 2003
BECK, U. Risk Society: Towards a New Modernity, London: Sage Publications, 1992 
________. World at Risk. Polity Press: Cambridge, UK, 2007
GHANEM, C. Discurso: I Conferência Internacional sobre o petróleo e ambiente. Trípoli, 2008, disponível em <http://www.panapress.com/freenewspor.asp?code=por013902&dte=13/05/2008> acesso em 26.03.2010
HART, L. Beyond Greening: Strategies for a Sustainable World, In: Harvard Business Review on Business and the Environment.Boston MA: Harvard Business School Press, 2000, p. 105-130
MAGRETTA,  J. Growth through Global Sustainability: An Interview with Monsanto´s CEO, Robert B. Shapiro, In: Harvard Business Review on Business and the Environment. Boston MA: Harvard Business School Press, 2000, p. 59-84
MURDOCH, J.; CLARK, J. Sustainable Knowledge, Geoforum, v. 25, n. 2, p. 115-132, 1994
SANTOS, B.de S. A Crítica da Razão Indolente. São Paulo: Cortez Editora, 2007
SHRIVASTAVA, P.  The Role of Corporations in Achieving Ecological Sustainability, Academy of Management Review, v. 20, n. 4, , p. 936-960, Oct., 1995 
SNEDDON, S. C. ‘Sustainability’ in ecological economics, ecology and livelihoods: a review, Progress in Human Geography , v. 24, n. 4 , p.. 521–549, 2000
SÖDERBAUM, P. Ecological Economics: A Political Economics Approach to Environment and Development. London: Earthscan, London, 2000
 ______________. Understanding Sustainability Economics: Towards Pluralism in Economics. London: Earthscan, 2008
VIEDERMANN, S. A economia da sustentabilidade: desafios, Cadernos de Estudos Sociais, v.11, n.1, p.141-167, jan./jun., Recife, 1995


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Trabalho, obra, profissão e diálogo

Interrompo os diálogos sobre rupturas e revoluções e entre cooperação e competição para deixar vir à tona ideias que querem me afogar. A questão da diferença entre trabalho, obra e profissão e como estes termos já foram entendidos no passado e são compreendidos hoje.

O trabalho humano que interage e transforma o ambiente econômico, social e a natureza não é um conceito neutro, e sim carregado de significados e possibilidades, que variam de época histórica para outra e também entre diferentes culturas. Guerreiro Ramos (2005) em sua tese Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho, escrita originalmente em 1949, lembra que nas sociedades pré-letradas o conceito de trabalho é algo difuso. O trabalho era um saber e um fazer, que se estendia sem fronteiras claras à totalidade da vida social. O sociólogo brasileiro afirma que em muitos casos não se encontra nas sociedades primitivas uma palavra específica para designar o trabalho como conceito abstrato. Existem nestas sociedades em termos linguísticos os ‘fazeres’ específicos, mas não o ‘trabalho’. Lembra também o autor brasileiro que o trabalho é o aspecto da vida social que mais de perto se relaciona com a economia. Seu significado em diferentes momentos históricos, tanto para a sociedade quanto para seres humanos em sua individualidade determina o que se aprende e como se aprende. “O nobre, na sociedade medieval, se orgulha de não trabalhar, como o guerreiro na cidade antiga” (GUERREIRO RAMOS, 2009, p. 37).

Há, portanto muitos valores sociais e individuais subjacentes ao trabalho que determinam a postura do indivíduo em relação ao mesmo. Voltando às ideias aqui apresentadas sobre as sociedades primitivas, quando inexiste separação clara entre trabalho e ócio, não há necessidade de incentivos, ou mecanismos de motivação para que o ser humano trabalhe. O trabalho é ao mesmo tempo necessidade de sobrevivência, criação e por vezes prazer. Foi com a introdução na vida social de conceitos como o lucro, o aluguel e a venda do trabalho que a sociedade como um todo passou a se preocupar com a motivação do ser humano para o trabalho. Foi neste momento do desenvolvimento social que surgiu a divisão, denotada pelos diferentes significados das palavras inglesas labor e work. Labor é trabalho, é labuta, é suor. Work é obra, é artesanato, é realização. Estes são conceitos que não surgiram e se solidificaram de uma hora para outra e sim por caminhos lentos e tortuosos. A humanidade vivenciou sociedades em que só havia trabalhos (ou obras, talvez seja melhor dizer) cooperativos, que não visavam lucro, sem mercado de trabalho formal, em mutirão. Já em outras sociedades o trabalho tinha um valor ascético, que podia inclusive salvar o espírito de quem mais arduamente labutasse.

“Em sua cidade ideal, Platão coloca os sábios no primeiro lugar, guerreiros em segundo, e os artesãos no último, o que é uma antecipação da constituição tripartida da sociedade medieval” (GUERREIRO RAMOS, 2009, p. 36). Hoje, o que diria um filósofo que quisesse sobreviver como Platão e não ser condenado à morte como seu mestre Sócrates? Que em primeiro lugar estão empresários, em segundo altos executivos, em terceiro os cientistas e depois, sem lugar no pódio, os demais?

Houve épocas da história da humanidade em que a aplicação de saberes técnicos para a dominação da natureza não tinha sentido, ou pela imobilidade da sociedade ou pelo fato destes saberes serem heréticos, pois a ordem natural não deveria ser perturbada. O trabalho dentro destes marcos se organizava de maneira estável, sem a necessidade de estudos "científicos" (na verdade ideológicos...) de divisão do trabalho ou de definição de competências individuais para maior eficiência ou eficácia. Guerreiro Ramos (2009, ps. 38-39) simplifica este excurtio ao afirmar que entre a Idade Média e a data em que F.W Taylor escreve seu Principles of Scientific Management em 1911, “medeia um sem número de ocorrências de difícil captação, mas que preparam o ambiente para aquela criação”. Segundo o autor brasileiro, é a ratio em oposição à traditio que desestabiliza também a organização do trabalho ao promover uma “ordem social fundada na calculabilidade dos atos humanos e na objetividade racional”. As sociedades anteriores só conheciam o trabalho como criação e arte, como obra e profissão (no sentido de professar sua vocação), como satisfação de necessidades do dia a dia ou do ano e suas estações. “Surge, porém agora a força de trabalho, o trabalho mercadoria, objetivo de especulação, da contabilidade e da ciência”.

Surge também a necessidade de que seres humanos em busca de maior liberdade pessoal, liberação de seus potenciais criativos e maior contribuição para a sociedade busquem entender que obra querem deixar. Refletir sobre que profissão realmente mobiliza a cada um. Pois profissão, como parente do ato de professar, é ato de vocação e fé. Ao mesmo tempo profecia e pronúncia do mundo. Como disse o grande mestre da educação brasileira, Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimidom me ajudando aqui entrelaçar esta discussão sobre trabalho, obra e profissão com o tema do diál : O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando portanto na relação eu-tu. Se é dizendo a palavra e pronunciando o mundo, que os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Cooperação e Cooperativismo


Meu caro amigo Rafael fez uma interessantíssima provocação sobre a sua crença na necessidade de um Não-Estado, formado por coletivos organizados de forma não hierárquica. Respondi a ele que partilho desta crença, mas reflito sobre a transição. Pretendo mais adiante me dedicar a escrever sobre aspectos que considero vitais para esta evolução, em grande parte temas econômicos. Isto porque, penso hoje que o grande problema que se apresenta é não a existência de um Estado, mas sim de uma mentalidade que coloca valores financeiros acima de todos os outros, estimulando a competição.
Por enquanto continuo pensando sobre como pode se dar a transição para esta sociedade reorganizada. Me ocorre que a força das ideias de Marx e seus seguidores acabou obscurecendo os ideais do socialismo utópico, que era realista e prático. Digo realista, porque a sociedade sem classes de Marx é tão idealista quanto o mundo das ideias de Platão ou o paraíso cristão. Já o cooperativismo é uma forma existente, real. Podemos nos organizar amanhã como cooperados de trabalho ou de consumo, com CNPJ e começar a minar o capitalismo por dentro... Ou não?
Deixo aqui então textos mais antigos, de meu mestrado, também  inéditos, sobre os ideiais do cooperativismo e como ele foi corrompido:
Cooperativas são formas de cooperação contratual entre pessoas. (PINHO, 1966a). São sociedadee de pessoas que se unem em bases democráticas para suprir determinadas necessidades comuns, tanto econômicas quanto sociais. Para a Aliança Cooperativa Internacional, órgão fundado em Londres em 1895, são aquelas sociedades que seguem os princípios originais dos Pioneiros de Rochdale, sendo os quatro principais: (1) adesão livre e voluntária; (2) gestão democrática ou auto-gestão, que garante a cada membro apenas um voto independente do número de suas cotas partes; (3) neutralidade política e religiosa; e (4) educação dos cooperados. (PINHO, 1966a). É uma empresa participativa e sem fins lucrativos, devendo os excedentes ser repartidos entre os associados. Trata-se de uma organização complexa, na qual o cooperado é ao mesmo tempo, dono e usuário da entidade. Enquanto dono tem o direito e o dever de tomar parte dos problemas e sucessos da cooperativa, sugerir ações corretivas e de fortalecimento, propor a criação de novos produtos ou serviços, responder pelos resultados apurados ao final do exercício. Enquanto usuário tem o direito de usufruir os serviços disponibilizados pela cooperativa.
 O processo de criação de uma cooperativa – sua origem – interfere na sua estrutura e funcionamento, que definirão, por sua vez, as formas de participação social. Esta origem pode ser de dois tipos: vertical ou horizontal. Por cooperativa de origem vertical entende-se aquela criada por entidades externas ao grupo de cooperados mediante uma estratégia previamente definida, gerando uma cooperativa hierarquizada e controlada por um grupo dirigente, implicando em dificuldades posteriores de integração dos cooperados à cooperativa (ALMEIDA; SOUZA, 2003). Isto ocorreu em muitas das cooperativas surgidas de forma forçada em regimes comunistas europeus ou asiáticos (PINHO, 1966b) ou durante a ditadura militar no Brasil (LOPES, 2003). Por cooperativa de origem horizontal entende-se aquela nascida da organização de um grupo de pessoas estimuladas por necessidades comuns percebidas e na qual a interferência de agentes externos se limita ao apoio e a orientação. São cooperativas geridas num ambiente mais democrático e apesar do período de gestação ser maior, têm mais facilidade de envolver os cooperados nos processos de participação.
As cooperativas desempenham hoje funções estratégicas chave para se atingir uma “orquestração” ideal de interesses, equilibrando individualismo e perspectiva comunitária. Permitem tanto no campo quanto na periferia das grandes cidades que os atores sociais se associem para intervir e mudar uma dada realidade. (MARTINEZ, 2002). O fortalecimento de cenários societários em que associativismo e cooperativismo acontecem com maior intensidade parece estar diretamente associado à redução de desigualdades sociais e políticas (KERTENETSKY, 2003).
Desde seus primórdios o ideal cooperativista foi o de organizar seres humanos em um meio social e econômico harmonioso. Isto ajudaria a suplantar o antagonismo individual e substituí-lo por uma nova ordem baseada em colaboração e associação. Para históricos sucintos do movimento cooperativista pode-se ler, por exemplo, o trabalho de Domingues (2004) e para obter um conhecimento mais aprofundado pode-se lançar mão do trabalho de Buber (2005), O Socialismo Utópico, que trata do tema do ponto de vista histórico-filosófico ou, ainda, das várias obras de Pinho (1966ab), que proporcionam visões históricas e sociopolíticas.
Nas três primeiras décadas do Século XIX surge uma série de obras de três autores “a quem Engels denomina os fundadores do socialismo” (BUBER, 2005, p. 35): Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Os dois primeiros ligados profundamente a ideais cristãos, e imaginaram o cooperativismo como uma forma de reformar a sociedade e a própria religião. A obra principal de Saint-Simon denomina-se New Christianity. Já Fourier defendia a propriedade comunitária. Foi o primeiro a formular uma federação de comunidades rurais e a idealizar uma forma de consumo e produção dentro das comunidades de trabalho. Considerava que o homem construía a sociedade de maneira egoísta, prevendo sempre o lucro. Com isso, o homem não desenvolveria sua própria personalidade, nem sua própria capacidade. Owen construiu suas idéias não em cima de teorias, mas em atividades práticas, como a do cotonifício de New Lanark, no seio do qual criou instituições sociais exemplares. Central para as idéias de Owen e importante para ser resgatado mais tarde do ponto de vista estratégico, é que ele entendeu que o vital não era a propriedade comum ou igualdade de consumo, mas uma igualdade de direitos e facilidades (BUBER, 2005).
 Estes alicerces iniciais do chamado Socialismo Utópico foram usados por outros pensadores para dar continuidade a propostas de transformação radical da sociedade. Nem sempre com o nome de cooperativismo, mas inspirado nos mesmos ideais, Pierre-Joseph Proudhon propõe a “solidariedade de todos os trabalhadores na mesma oficina” (BUBER, 2005, p. 50). Mais tarde os anarquistas Kropotkin e Landauer desenvolveram a idéia de uma “aldeia socialista”. Este último funde as idéias de Proudhon e Kropotkin e imagina uma sociedade de trocas igualitárias, que se apóia sobre a comuna, a comuna rural, que reúne a agricultura e a indústria. Durante um largo período o cooperativismo foi entendido como estratégia de transformação social. Estaconcepção de cooperativas como transformadoras da realidade teve continuidade com movimentos de caráter confessional, católicos, protestantes ou judaicos. (PINHO, 1966b)
Segundo Serayev (1981), os clássicos do marxismo logo passaram a afirmar que sem estabelecer a ditadura do proletariado nenhum sistema cooperativo poderia servir de instrumento para transformar a sociedade. Ainda assim valorizavam o papel social do movimento cooperativo. Marx e Engels orientavam politicamente o movimento cooperativo como organização de trabalhadores dentro do marco regulatório do sistema capitalista de produção, indicando seu máximo aproveitamento na luta contra a burguesia. A diferença para os autores anteriores é que Marx e Engels rejeitaram idéias de transformação pacífica do capitalismo em socialismo. Determinaram que “antes da conquista do poder estatal pelo proletariado o sistema cooperativo jamais pode transformar a sociedade capitalista” (SERAYEV, 1981, p. 43).
Nos trabalhos escritos depois da Revolução de Outubro, Lênin (1979) terminou de elaborar a teoria das cooperativas e das vias para usá-las em diferentes formações socioeconômicas. Destacava a importância que estas tinham em uma lenta e gradual transformação da propriedade rural, já que considerava impossível por algum procedimento rápido transformar milhões de pequenas fazendas camponesas em fazendas estatais. Isto deveria ser feito exatamente através de um lento procedimento de aglomeração em cooperativas de convencimento das vantagens de cultivo em comum. Entendia assim as cooperativas como forma de edificação do socialismo (SERAYEV, 1981, p. 69), mas reconhecia que era necessário “conceder à cooperação uma série de privilégios de ordem econômica, financeira e bancária” (LENIN, 1979). Nos outros países socialistas da época pós-segunda guerra mundial, como China, Polônia, Tchecoeslováquia, República Democrática da Alemanha, Hungria, Romênia, Bulgária, Albânia, Mongólia, República Popular da Coréia e República Popular do Vietnã, as cooperativas também foram consideras como importante estratégia na consolidação do socialismo. Apenas para citar o exemplo chinês, as cooperativas foram consideradas o principal instrumento para o avanço do socialismo, “por permitirem acomodar a milenar formação individualista dos camponeses ao ambiente do socialismo” (PINHO, 1966b, p. 126).
Quando os 28 pobres tecelões de Rochdale se uniram e durante um ano economizaram para abrir seu próprio armazém, deram um exemplo simples de ganho de escala e de sinergia que seria repetido depois por inúmeras cooperativas. Desde o começo também, os estatutos dos Pioneiros de Rochdale propunham idéias que podem ser traduzidas em termos modernos como integração vertical ou horizontal, bem como alianças estratégicas com outras cooperativas. O sucesso destas idéias iniciais passou a ser seguido em diversos países (PINHO, 1966b). Cooperativas de crédito surgem na Alemanha e norte da Itália, similares a pequenos bancos para financiamento da classe média urbana. Estas já se mostravam menos preocupadas com os ideais de transformação da sociedade e sim com aspectos mais pragmáticos, como a abertura de novos negócios, a melhoria da qualidade de vida do homem do campo, ou a solução de problemas do crédito agrícola.
 Hoje é indiscutível a importância do movimento cooperativista como forma de promoção da justiça social e distribuição da riqueza no mundo capitalista. Domingues (2004) traz em sua pesquisa dados de grande relevância para a compreensão do fenômeno no mundo. Na Polônia, mais de 75% das moradias existentes foram construídas por cooperativas. Na Suécia, a cadeia de cooperativas “OK” possui a maior refinaria de petróleo do país e é responsável pela distribuição de 20% do total de combustíveis e produtos petrolíferos e as cooperativas são responsáveis por 99% da produção de laticínios. Na Malásia, o maior sistema de seguros é do movimento cooperativista. Na Índia as cooperativas leiteiras têm usinas de transformação de leite, que estão entre as maiores e mais modernas do mundo e, além disso, cerca da metade da produção de açúcar derivam delas. A Islândia, pequena ilha do mar do Norte, é comumente conhecida como “Islândia Cooperativista”, devido ao elevado nível de desenvolvimento das cooperativas.  O segundo lugar no sistema bancário mundial de crédito é ocupado pelas Caixas Cooperativistas Agrícolas Francesas. As cooperativas de Mondragón, Espanha, são grandes produtoras de refrigeradores e eletrodomésticos e estão entre as 10 maiores empresas do país. As cooperativas polivalentes japonesas, responsáveis por 95% da colheita do arroz, agregam quase que a totalidade dos agricultores, e ocupam um lugar de destaque no desenvolvimento econômico das regiões rurais. No mesmo país, quase todos os pescadores são cooperados. As cooperativas de eletrificação rural foram responsáveis pela quase totalidade da energia elétrica implantada no setor rural dos Estados Unidos.
Se na Europa o associativismo em forma de cooperativas surge como reação proletária às condições de extrema exploração, o cooperativismo brasileiro tem seu início em condições opostas. O primeiro era essencialmente urbano em sua origem e o brasileiro promovido pelas elites agrárias. Enquanto que na Europa surge como movimento popular, no Brasil é imposto de cima para baixo, como política de controle social. (MISI, 2000). Hoje o cooperativismo brasileiro é totalmente alinhado com a ideologia neoliberal competitiva.  “Costuma ser apresentado como o meio adequado para a classe de baixa renda se inserir no mercado, competindo com os grandes conglomerados”.(MISI, 2000, p. 76).
O cooperativismo tem mesmo assim alto potencial socioeducativo (MISI, 2000). Segundo Pinho (2000), ajuda na formação de uma consciência de cidadania crítica dos cooperados e reafirma a responsabilidade individual e coletiva pelo sucesso de empreendimentos. As cooperativas são também apontadas como forma de organização especialmente favorável á superação das desigualdades de gênero, pela tradição cooperativista de oposição a discriminações.  Podemos como conclusão afirmar que os ideias cooperaritivistas são solução e possibilidade de transição. Sua prática é no entando problemática e deve ser implementada com atenção. Como formas de organização que promovem a reflexão crítica sobre propriedade e valores ecomomicos e sociais, são importantíssimas. Podem no entanto servir a uma maior exploração das pessoas pelas pessoas, como lembra o russo Serayev:
 As cooperativas são formas de organização social econômica de operários, camponeses, artesãos e outras faixas da sociedade capitalista cuja situação econômica é instável ou piora com o desenvolvimento do capitalismo. Estes se agrupam para ações conjuntas, com o objetivo de defender seus interesses econômicos. Essa cooperação atua, no entanto, como força produtiva auxiliar que assegura uma produtividade mais elevada do trabalho explorada pelo capital (SERAYEV, 1981).


sexta-feira, 9 de março de 2012

Contracultura e Biciletas Brancas


O nascimento da contra cultura holandesa e a relação atual com o sistema de compartilhamento de bicicletas


por     Martin Draghi  



Nos meus períodos de preocupação por duvidar se tinha escolhido a carreira que realmente desejava, sempre buscava por conteúdo que me mostrassem algo novo, algo que fosse totalmente diferente do consumismo exagerado e a alienação do indivíduo quanto a necessidade de sempre buscar no consumo exacerbado sua forma de viver e de formar uma identidade própria.
Nesses momentos me pegava nas grandes livrarias do Centro do Rio de Janeiro procurando qualquer material que a primeira vista me parecesse interessante.
Eis que numa dessas incursões encontrei um livro que realmente me deixou encantando quanto a preocupação e participação ativa de um grupo de holandeses anarquistas denominado Provos na construção da sociedade holandesa.
A atuação dos Provos em Amsterdam se deu de diversas formas de atuação, sempre utilizando a criatividade e os “happenings” – que eram manifestações artísticas extravagantes em local público – para alcançar os objetivos que tinham de criar uma sociedade mais igualitária. Existiam algumas idéias que foram lançadas pelos próprios Provos denominadas Plano Branco.
Entre os planos brancos, existia um em específico que é foco deste post. O Plano Bicleta Branca.
Antes de iniciar a explicação do Plano Bicicleta Branca gostaria de demonstrar em qual contexto social e mercadológico esse tipo de ação teve início e como ele teve forte influência na importância que os holandeses dão atualmente para as bicicletas como forma de locomoção não-poluente.
O ano é 1960, época que a indústria automobilística nota um crescimento substancial em suas vendas. Nesse sentido, o carro era visto como um objeto de status e principalmente de “progresso” entre seus usuários, ter um carro adquiria um valor simbólico ao ser e alimentava a ideia de que era impossível se locomover em um meio de transporte que não tivesse 4 rodas.
Ou seja, nos anos 60, lutar contra o automóvel era algo inédito, uma blasfêmia contra “as maravilhas do progresso”. Em pleno boom automobilístico, a tribo dos Provos tinha clarividência de recusar o culto as quatro rodas e de propor a bicicleta como santo instrumento tribal, reivindicando o direito de andar de bicicleta pela cidade sem serem ameaçados fisicamente por um “bando de psicopatas agressivos, trancafiados numa peidorrenta caixa de ferro” de acordo com as palavras dos Provos. E reivindicando, acima de tudo o direito e o prazer de não seguirem os modelos de consumo, o direito de não consumir.
Abaixo, segue o material que foi divulgado pelos Provos em seu jornal. O texto é longo, mas é incrivelmente racional se levamos em conta o contexto em que foi escrito. A clareza que os Provos tinham em relação a ameaça que os carros trariam tanto para o convício social como para o meio ambiente é incrivelmente atrativa.

“Plano Bicicletas Brancas
Apesar de termos o burgomestre que Deus nos deus, milhares de funcionários científicos, mais capital, mais “Bem Comum, e mais “Democracia” do que nunca, temos que constatar que:
-Toneladas de gases venenosos são produzidos e difundidos no espaço vital de quase um milhão de habitantes.
- Ruas e calçadas desparecem sob as “caixas de ostentação de status”.
- Centenas de mortos e milhares de feridos são sacrificados ao desleixo de uma minoria de motoristas.
- A cidade teve e continua a ter prejuízos irreparáveis.

É, portanto, absolutamente necessário que o centro de Amsterdam seja fechado ao tráfego de veículos. A eliminação do trânsito melhorará automaticamente o fluxo de transportes públicos em até 40%. Mantendo o mesmo número de bondes e funcionários da companhia de transportes, será possível poupar 2 milhões de florins por ano.
Propomos que a prefeitura adquira 20 mil bicicletas brancas ao ano, como integração do sistema público de transporte. Tais bicicletas brancas pertencerão a todos e a ninguém. Desse modo, o problema de trânsito no centro da cidade poderá ser resolvido ao cabo de poucos anos. Como primeiro passo para alcançar as cotas de 20 mil bicicletas brancas ao ano, Provo oferece aos voluntários a oportunidade de ter as próprias bicicletas pintadas de branco, apresentado-se à meia-noite em ponto diante da estátua do Moleque no Spui. 
Os táxis e os meios de transporte de utilidade pública terão de funcionar com motores elétricos e alcançarão uma velocidade máxima de 40 quilômetros por hora.
Os motoristas deverão deixar o próprio carro em casa e ir à cidade de trem, ou estacionar em espaços especialmente construídos nos limites da cidade, tomando em seguida um meio de transporte público.
O AUTOMÓVEL é um meio de transporte que só se pode admitir em zonas escassamente habitadas. Os automóveis são meios de transporte perigosos e totalmente inapropiados para a cidade. Existem meios melhores e tecnicamente mais sofisticados para nos deslocarmos de uma cidade para outra. O automóvel representa uma solução ULTRAPASSADA para esse tipo de utilização. 
Não há mais tempo para políticas titubeantes e velhos expedientes. Aquilo de que necessitamos nesse momento é uma solução radical.
NÃO AO TRÂNSITO MOTORIZADO
SIM ÀS BICICLETAS BRANCAS“
Incrivelmente esse texto apresenta muito do que acontece atualmente em Amsterdam em termos de locomoção. A influência desses futuristas anárquicos demonstra como é possível através do consumo colaborativo criarmos uma sociedade que gasta menos insumos de produção e consequentemente prejudica menos o meio ambiente.
A incrível idéia de pintar bicicletas de branco e ao invés de guarda-las em casa, deixando-as em algum local público para que outra pessoa possa utilizar-la é basicamente o que vemos hoje com os sistemas por todo o mundo de compartilhamento de bicicletas. No Rio de Janeiro já existe esse projeto e chama-se Bike Rio, apoiado por uma empresa do setor privado bancário.
Levando em conta o exemplo das bicicletas é importante notar que a sua sistemática aplicada ao consumo colaborativo acaba criando um grande Plano Branco Geral, onde a metodologia de trocar produtos de consumo se dá em larga escala e se aplica a TODOS os segmentos de mercado. Seria o consumo colaborativo uma extensão da ideia criada pelos anarquistas holandeses?
Abaixo segue um vídeo que embora não cite os Provos, demonstra um pouco da história dos holandeses e sua atual relação com as bicicletas e o transporte público



Ps – Alguns podem estar confusos quando a parte do título nomeando a contra cultura, porém, fica claro que o nascimento desse movimento não se deu na Califórnia como todos pensam, mas sim teve total influência pelas ações realizadas pelos PROVOS. O que acabou “nublando” o conhecimento dos PROVOS por muitas pessoas é que estes não detinham de um meio de comunicação televisivo fortemente aparelhado como existia nos EUA.  Para quem ficou curioso para saber mais sobre o livro, seu nome é “Provos – Amsterdam e o nascimento da contracultura – Autor Matteo Guarnaccia“

quinta-feira, 8 de março de 2012

Green Building ou Mad Max ?

Comecei ontem um curso de diálogos. Caramba, será que até isso precisa ser estudado, lido e pensado? Para mim sim. No fundo o curso é sobre comunicação não violenta. Eu sou um comunicador levemente violento, por natureza ou aprendizado. Ou ambos quem sabe. Para realmente sentar, ouvir, me permitir falar quando sinto que é a minha hora e não entrar nas outras formas de comunicação, me custa muito. Só para deixar registrado, as outras formas de comunicação são o debate, a discussão e a deliberação. Acho que volto a elas mais tarde. Ou não.
     O grande tema que me interessa no momento é o difícil diálogo entre dois paradigmas que se chocam hoje. Hoje eles debatem, discutem e deliberar e chegar a decisões parece impossível. Trata-se do choque entre dois ideários, um que acredita que nossos problemas atuais e globais de larga escala, como a poluição, a fome, a destruição de biomas e outros riscos, serão resolvidos pela ciência e fazendo business as usual. Sem mudar nada no nosso modo de pensar, apenas com leves mudanças de ação. Tecnologias que gastem menos energia, alguns parques para manter pedaços da natureza a salvo, umas latinhas de lixo e usinas de reciclagem aqui e ali e pronto. De outro lado, o ideário que acredita que precisamos de uma revolução profunda e radical, de parar tudo e começar de novo.
    Durante meu doutorado recentemente terminado, o grupo de gestores de uma rede hoteleira com o qual trabalhei chegou às seguintes conclusões, sem terem se aprofundado anteriormente nas questões teóricas acima. Apenas para contextualizar meu trabalho era sobre desenvolvimento de competências ligadas à sustentabilidade. Se você não gosta deste termo fique tranquilo. Eu também não gosto, mas o adotei porque é corrente na maior parte das organizações e meu doutorado era em Administração, na área de Gestão Humana e Social em Organizações. Logo no nosso primeiro encontro, ao ser perguntado sobre como pensavam sobre o seu futuro, duas visões emergiram deste grupo formado por jovens de no máximo 40 anos.
 Visão Green Building (nome dado pelo próprio grupo para sua visão de futuro): Tendência de mercado na construção civil. Reaproveitamento de água, iluminação natural, economia de energia. Importância do eixo econômico: um projeto tem que se sustentar economicamente. Importância do eixo social e ambiental: pessoas interagindo visando manter o ecossistema. Velocidade de informação: a internet vai permitir ver os que os outros entendem e estão fazendo por sustentabilidade.
 Visão Mad Max (nome dado pelo grupo para sua visão de futuro): Visão de futuro que surgiu há 30 anos. Corremos o risco de lutar pela sobrevivência e pelos recursos. O meio ambiente estará destruído e estarão ocorrendo mais desastres naturais ligados ao aquecimento global. Questões econômicas como hoje conhecemos serão secundárias, pois teremos voltado a uma época de bárbarie, em que cada um luta por sobreviver.
     Como estas duas viões de mundo podem conversar? Elas são fruto de dois ideários que pouco vem conversando nos últimos séculos. Maneiras de ver o mundo que vem se chocando, brigando e conflitando. Minha pergunta para terminar hoje. Será que é isso mesmo? A solução passa pelo conflito, a solução é dialética e as coisas vão se acomodando à medida que brigamos agressivamente ou resistimos pacificamente, ou existe a possibilidade de dialogar.
     Este texto tinha mais o objetivo de inaugurar esta coluna, de vencer a inércia. Voltarei.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A esperança é a última que morre.


Eric Hobsbawm: "Me recuso a dizer que perdi a esperança"PDFImprimirE-mail
História
Eric Hobsbawm   
Sex, 25 de Setembro de 2009 16:03

Eric Hobsbawm
Eric Hobsbawm
O historiador Eric Hobsbawm - que tem sua trilogia (A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Extremos) reeditada no Brasil - diz que o aniversário da queda do Muro de Berlim deveria motivar uma discussão sobre o Ocidente pós-guerra fria. Defendendo suas convicções marxistas, ele afirmou: "Me recuso a dizer que perdi a esperança". Para Hobsbawn, o capitalismo chegou ao seu limite. 

Quando Eric Hobsbawm estava escrevendo "A Era do Capital" -lançado em 1975-, explicou que fazia um imenso esforço para estudar algo que não lhe agradava nem um pouco. Hoje, o historiador marxista diz ter o mesmo sentimento, "eu não gostava da burguesia vitoriana e ainda não gosto, embora apreciasse o dinamismo daquele tempo". À essa impressão, porém, vem adicionando, nos últimos anos, mais uma, a nostalgia. 

"Agora, quando comparo o século 19 com o 20, sinto simpatia pelo modo como aqueles homens acreditavam no progresso. Foi um século de esperança. E essa minha nostalgia cresce à medida que o tempo passa e vejo, com pessimismo, o que vem acontecendo", diz. 

Hobsbawm, 92, conversou com a Folha por telefone, de Londres, justamente sobre a reedição no Brasil de sua trilogia sobre o século 19 ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios"), já um clássico da historiografia sobre o período, pela editora Paz e Terra -que também relançará em 2010 outro título do historiador, "Bandidos". 

Na trilogia, Hobsbawm analisou o que chamou de "longo século 19", período que vai de 1789 a 1914. Começa com as revoluções europeias que definiram a expansão do capitalismo e do liberalismo no planeta -a Francesa e a Industrial inglesa- e vai até as vésperas da Primeira Guerra Mundial. 

Apesar dos ataques que sofre por ainda defender a bandeira do comunismo, os três volumes de Hobsbawm são reimpressos todos os anos na Inglaterra, tendo sua explicação sobre o tema se imposto como uma espécie de cânone. 

Hobsbawm é com frequência procurado para comentar temas do presente -algo que seus críticos tampouco perdoam. Agora, às vésperas do aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim (em novembro), seu conhecimento sobre os tempos que estudou e vivenciou, assim como suas convicções políticas, são novamente trazidos ao debate. 

"A queda do Muro foi o fim de uma era. Não só para a Europa do Leste, mas para o mundo inteiro. O capitalismo chegou a seu limite e a a crise econômica mundial indica claramente o fim de um ciclo." 

Contudo, o historiador considera que as discussões sobre o episódio estão muito centradas em tentar entender por que a experiência comunista fracassou, quando o que deveria estar na pauta é o futuro do Ocidente. Para ele, o mundo pós-Guerra Fria ainda não fez uma necessária autocrítica. 

Leia trechos da entrevista que Eric Hobsbawm concedeu à Folha: 

O que mais deveria ser discutido no aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim? 

A celebração é oportuna porque o capitalismo agora chegou a seu limite. A crise econômica mundial é o fim de um ciclo, que começou a ruir quando caiu o Muro em Berlim. No Leste Europeu, vejo dificuldade em rompimento com o legado comunista. Mas é o Ocidente quem deve refletir mais sobre o que ocorreu na Guerra Fria e o que pode ser feito para evitar um novo colapso. 

As "Eras" são consideradas um exemplo de boa análise histórica dedicada a um amplo período. O sr. acha que falta ambição a historiadores hoje? 

Para fazer história com uma perspectiva maior, é preciso ser um intelectual maduro. Hoje, os jovens historiadores gastam muito mais tempo em suas especializações. Quando estão aptos a dar um passo maior, hesitam. A história equivocadamente se afastou da "história total" que fazia Fernand Braudel [1902-1985].
O sr. começa "A Era dos Impérios" contando uma história autobiográfica (a do encontro de seus pais no Egito) e então propõe uma reflexão sobre história e memória. Quão diferente foi escrever este volume, que se refere a passagens mais próximas do seu olhar no tempo, do que os anteriores?
Neste livro tive de trabalhar com o que chamo de "zona de penumbra", onde se misturam nossas lembranças e tradições familiares com o que aprendemos depois sobre determinado período. Não é fácil, pois trata-se de um território de incertezas e em que há um elemento afetivo. Por outro lado, trata-se de uma oportunidade de estimular aquele que lê a pensar sobre como seu próprio passado está relacionado com a história.
Em seu novo livro ("Reappraisals"), o historiador britânico Tony Judt escreveu um ensaio sobre o senhor ("Eric Hobsbawm and the Romance of Communism"). Neste, mostra admiração por seu conhecimento, mas faz uma severa crítica: "para fazer o bem no novo século, nós devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo. Hobsbawm se recusa a mirar o demônio na cara e chamá-lo pelo nome". Como o sr. responderia a seu colega?
A crítica de Judt não se justifica. O que ele quer é que eu diga que estava errado. Em "A Era dos Extremos", eu encaro o problema, o critico e condeno. Não tenho problemas em dizer que a Revolução Russa causou dor e sofrimento à população russa. Porém, o esforço revolucionário foi algo heroico. Uma tentativa de melhorar a sociedade como não se viu mais na história. Me recuso a dizer que perdi a esperança.
O sr. havia dito, numa entrevista ao "Independent", que havia alguns clubes dos quais não iria ser sócio nunca, referindo-se aos intelectuais ex-comunistas. Ainda pensa assim?
Não vejo problema quando um intelectual, especialmente de países do Leste Europeu, percebe que a democracia é melhor do que o sistema autoritário em que vivia. É normal a mudança de posição quando surgem fatos novos. O ex-comunista que condeno é aquele que antes militava em grupos de esquerda e que hoje tem uma bandeira única, a de ser anticomunista apenas, esquecendo-se do resto das ideias pelas quais lutava. Também me entristece ver intelectuais jovens, que não passaram pela história dessas lutas, repetindo e tentando tirar benefício desse mesmo tipo de propaganda.
A América Latina está às vésperas de comemorar, em vários países, os 200 anos do início das lutas de independência. Que análise faz do atual momento?
A dependência econômica ainda é um fato, mas politicamente a América Latina é cada vez mais livre. Washington jamais voltará a exercer a influência de antes, tampouco a apoiar golpes ou ditaduras como fez no passado. O que está acontecendo em Honduras é um sinal disso. O Brasil tem papel central nesse processo, uma vez que o México se transforma cada vez mais em apêndice dos EUA.

Qual a sua formação? Qual a sua luta? Qual o seu legado?




Inteligência militante




Por Diego Viana | De São Paulo
Claudio%20Belli%2FValor  Bosi em casa: “O tom equilibrado (de Nabuco) produz um efeito de maturidade psicológica e moral que faz bem ao leitor de hoje”
Joaquim Nabuco é um dos principais atores da formação do Brasil. Por décadas, lutou pela abolição da escravidão, dizendo, profeticamente, que ela permaneceria "por muito tempo como a característica nacional" do país. Depois da queda do Império, fundou com Machado de Assis a Academia Brasileira de Letras e dedicou-se à diplomacia.
Enquanto viveu nos Estados Unidos e no Reino Unido, o autor de "Um Estadista do Império" foi divulgador da obra de Luís de Camões. Ao fim da vida, produziu as memórias que compõem "Minha Formação", republicado agora no Brasil pela Editora 34.
Nas memórias, o componente político e o literário de Joaquim Nabuco se fundem, como assinala Alfredo Bosi na sua apresentação à obra. O paulistano Bosi, que ocupa a cadeira 12 na academia fundada por Nabuco, é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo e autor da "História Concisa da Literatura Brasileira" (1970).
Como Joaquim Nabuco, a atuação de Bosi não se restringe a um campo. Coordena o grupo de pesquisa em Cultura e Literatura do Instituto de Estudos Avançados, da USP, onde edita a revista "Estudos Avançados". Outro ponto de encontro entre Alfredo Bosi e Joaquim Nabuco decorre de seu livro "Dialética da Colonização" (1992), em que discute a formação do Brasil desde o padre Anchieta, no século XVI, até a atualidade. O trabalho foi agraciado com o Prêmio Casa Grande e Senzala, conferido pela Fundação Joaquim Nabuco. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
"As raízes da exploração e da opressão ainda não foram arrancadas do solo econômico e político das sociedades contemporâneas"
Valor: As memórias de Joaquim Nabuco iluminam o personagem histórico? São um documento da época ou devemos nos ater ao caráter literário?
Alfredo Bosi: "Minha Formação" deriva de uma reconstrução do percurso cultural e militante de Nabuco, com ênfase nas razões do abolicionismo, de que foi um dos mais vigorosos defensores. Há no livro uma coerência de perspectivas políticas, que se podem definir como o limite do nosso liberalismo democrático, oposto ao liberalismo escravista e excludente, que era, no fundo, um conservadorismo renitente. O tom equilibrado dos seus julgamentos produz um efeito de maturidade psicológica e moral que faz bem ao leitor de hoje, agredido pela irresponsabilidade de nossa vida política e de boa parte da mídia.
Valor: Nabuco é uma das grandes figuras na formação do Brasil como nação. Sua atuação vai da historiografia à diplomacia, da política à literatura. Figuras desse vulto pertencem ao passado?
Bosi: Quando nos debruçamos sobre a biografia e a obra de Nabuco e as comparamos com a dos nossos homens públicos, não podemos deixar de sentir uma nostalgia pelo que parece irremediavelmente perdido. Mas, ao longo do século XX, intelectuais progressistas como Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, entre outros, deixaram marcas e discípulos. É nosso dever puxar os fios que atam o passado ao presente, em vez de apenas deplorar as carências de que vem sofrendo a inteligência militante brasileira.
Valor: Quão profundamente está enraizado o legado de Nabuco, que foi um brasileiro não hegemônico, isto é, abolicionista e liberal?
  Nabuco (à dir., de camisa clara), em 1906: ele "é um escritor excepcional no quadro dos estilistas rebuscados do seu tempo. Tudo nele é transparente", afirma Bosi
Bosi: Nabuco e seus inspiradores ou companheiros de geração - Tavares Bastos, André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama, Joaquim Serra, José Bonifácio o Moço, Rui Barbosa, Castro Alves... - foram figuras de resistência no contexto político do Segundo Reinado. Mas sua influência intelectual e ética foi breve, pois a Proclamação da República, franqueando o poder às oligarquias estaduais, não levou adiante as propostas mais avançadas daquele liberalismo democrático. Como acontece hoje com a inteligência de esquerda, seu prestígio nos meios intelectuais é considerável, mas está longe de abalar os pilares do nosso capitalismo selvagem.
Valor: Se a luta, hoje, não é pela abolição, persiste uma falha basilar no Brasil quanto aos direitos humanos. Que lições podemos tomar do movimento abolicionista?
Bosi: As exigências formuladas sob o nome de Direitos Humanos prolongam a luta democrática, cujo início pode datar-se das revoluções inglesa, francesa, americana (século XVIII) e dos vários movimentos socialistas e anarquistas desencadeados a partir de meados do século XIX. Nem seria justo omitir a perseverança dos filantropos evangélicos no combate à escravidão: Joaquim Nabuco, ligado à Anti-Slavery Society, muito lhes deve. Quase todos os direitos sociais e políticos foram conquistados ao longo desses dois séculos e meio. Mas as raízes da exploração e da opressão ainda não foram arrancadas do solo econômico e político das sociedades contemporâneas. O Brasil não é, porém, um caso isolado: os conflitos que aqui explodem também ocorrem em outros países, apesar das diferenças de cultura e estilo de vida.
Valor: O senhor cita uma interpretação psicanalítica à alteração na desinência do engenho Massangano(a) no texto de Nabuco e sugere um recalque do lado africano do engenho, ressurgindo em um escravo fugido. Como devemos entender os mecanismos desse recalque?
Bosi: Acho sugestiva a interpretação psicanalítica ou psicossocial que Lélia Coelho Frota deu à ambivalência do nome do engenho em que Nabuco passou a sua infância. A desinência masculina (Massangano) teria a ver, no inconsciente do memorialista Nabuco, com a estrutura escravista do engenho. A feminina (Massangana), com o lado matriarcal e benigno da madrinha do menino, que o criou até os 8 anos, quando ele partiu do engenho e foi morar com os pais no Rio. Não sei até que ponto devo confiar nessa interpretação, mas, "se non è vero, è bene trovato".
"O subdesenvolvimento e a macaqueação dos costumes estrangeiros não devem impedir-nos de ver nossa capacidade de invenção cultural"
Valor: Nabuco diz que "não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra". O que implica esse imperativo, depois de 125 anos?
Bosi: A frase de Nabuco é exemplar e significa: é preciso instituir o trabalho digno do adjetivo "livre" com que se designa o trabalho assalariado. Mas não só: seria preciso apagar os vestígios de injustiça e humilhação que o cativeiro iria deixar, como deixou. Hoje essa tarefa tem aspectos particulares: é preciso defender, a todo custo, as exigências codificadas na legislação trabalhista, ameaçada pelas investidas da desregulamentação neoliberal. E levar a bom termo a reforma agrária, proposta literalmente presente em Nabuco.
Valor: O jovem Nabuco se diz abolicionista para prestar um serviço à "raça generosa entre todas", ou seja, com fundamento sentimental. Já no texto "A Escravidão", ele emprega a argumentação racional do direito à propriedade sobre o corpo. Como conjugar as duas posições?
Bosi: A contradição é aparente. O afeto profundo que a convivência com os escravos de Massangana despertou no menino Joaquim motivou o jovem a lutar pela abolição: são raízes emotivas que tantas vezes ditam a nossa conduta de adultos. Quanto às razões objetivas, Nabuco valeu-se de uma argumentação jurídica, mostrando que a escravidão feria o direito de propriedade do próprio corpo, que era subtraído ao cativo. Ele usou sagazmente um argumento dos escravistas (o "sagrado direito de propriedade") para derrotá-los no próprio campo retórico...
Valor: Joaquim Nabuco e Machado de Assis foram próximos e fundaram, juntos, a Academia Brasileira de Letras. Se Machado queria uma academia puramente literária e Nabuco, mais generalista, com cientistas e outros intelectuais, pode-se dizer que Nabuco prevaleceu?
Bosi: A proposta de Nabuco, feita em carta a Machado de Assis e aprovada pelos confrades na Academia Brasileira de Letras, era a da inclusão de figuras notáveis da cultura e da vida pública brasileira no quadro da nova instituição. É provável que não fosse esse o ideal de Machado, que, mais de uma vez, se pronunciou pelo caráter prioritariamente literário da vida acadêmica. Mas Machado não discutiu nem resistiu. Tinha "tédio à controvérsia", expressão da sua personagem, o Conselheiro Aires.
"Os atos de violência e barbárie que estamos presenciando não são fatos isolados. Têm a ver com um sistema político pseudodemocrático"
Valor: Joaquim Nabuco é lembrado mais por seu legado político do que pela atuação literária. Qual é o estatuto do Nabuco divulgador de Camões, memorialista, escritor?
Bosi: É difícil distinguir na obra de Nabuco o componente político do literário. Em uma obra memorialista como "Minha Formação", o político está presente ao historiar sua luta liberal e abolicionista. Digamos que foi esse o objetivo maior do seu projeto como homem público. Mas a memória não se exprime sem a configuração de imagens penetradas de sentimentos. Imagens e sentimentos são o corpo e a alma da forma literária. No antológico capítulo "Massangana", encontramos Nabuco escritor, sensível, reflexivo, mas cioso da clareza que aprendeu na leitura atenta dos escritores franceses do século XIX. Nabuco é um escritor excepcional no quadro dos estilistas rebuscados do seu tempo. Tudo nele é transparente.
Valor: Nabuco comenta o conflito entre suas influências europeia e americana. São as duas grandes hegemonias dos últimos séculos, período de formação do Brasil como país periférico. Fala-se, hoje, na ascensão do país como potência autônoma; qual seria o lugar dessas influências nesse quadro?
Bosi: A pergunta recapitula as grandes intersecções que o Brasil viveu desde o Descobrimento. Primeiro, a intersecção com a metrópole portuguesa no período colonial. Depois, a intersecção deu-se com as culturas hegemônicas, francesa e inglesa. Enfim, no século XX, com o estilo de vida e a linguagem americana. Não convém isolar o Brasil desses grandes ciclos culturais. Tampouco a noção de periferia deve cobrir toda a nossa vida pública e privada. Basta analisar de perto a obra de grandes artistas, como Aleijadinho, Portinari e Volpi, ou o romance de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ou a poesia de [Manuel] Bandeira, [Carlos] Drummond [de Andrade], Cecília Meireles, para libertar-nos do complexo de inferioridade e de eterno "atraso estrutural". O subdesenvolvimento econômico e a macaqueação dos costumes estrangeiros são fatos que pesam, no Brasil e fora do Brasil, mas não devem impedir-nos de ver nossa capacidade de invenção cultural.
Valor: Nabuco diz também que "o verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade", no espírito do liberalismo do século XIX. Como seria a releitura dessa frase em tempos de globalização, para manter uma posição de conciliação em meio à costura conflituosa entre o local e o mundial?
Bosi: Os exemplos da resposta anterior atestam a capacidade de interação criativa entre a realidade local e modelos que a globalização cultural está sempre divulgando em um mundo centrado na dinâmica do mercado. Talvez seja um bom começo pensar que o Brasil não só recebe, mas também oferece ao sistema globalizado projetos e produtos concebidos aqui. Esse dar e tomar e esse intercâmbio, que a internet potencia, talvez dissipem, com o tempo, a impressão de que nações e povos estão submersos na indiferenciação global.
Valor: O senhor define a escravidão no tempo de juventude de Nabuco como "fato social total". O fato social possui também uma dimensão atávica, que se manifestaria na truculência da relação entre o poder e a população no Brasil?
Bosi: Como Nabuco mostra cabalmente, a escravidão investia todos os setores da população, não só os trabalhadores e seus proprietários, mas também o Estado, a Igreja, as relações públicas e privadas. Os atos de violência e de barbárie que estamos presenciando não são fatos isolados ou efeito de conjunturas econômicas locais. Têm a ver com um sistema político pseudodemocrático, baseado na representação precaríssima do cidadão no quadro das instituições legislativas e executivas. Se a democracia representativa é mesmo o melhor dos piores regimes, talvez se deva melhorá-lo um pouco, insistindo na democracia participativa, como a que se tentou em alguns municípios que conseguiram elaborar orçamentos públicos com participação do cidadão.