sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A esperança é a última que morre.


Eric Hobsbawm: "Me recuso a dizer que perdi a esperança"PDFImprimirE-mail
História
Eric Hobsbawm   
Sex, 25 de Setembro de 2009 16:03

Eric Hobsbawm
Eric Hobsbawm
O historiador Eric Hobsbawm - que tem sua trilogia (A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Extremos) reeditada no Brasil - diz que o aniversário da queda do Muro de Berlim deveria motivar uma discussão sobre o Ocidente pós-guerra fria. Defendendo suas convicções marxistas, ele afirmou: "Me recuso a dizer que perdi a esperança". Para Hobsbawn, o capitalismo chegou ao seu limite. 

Quando Eric Hobsbawm estava escrevendo "A Era do Capital" -lançado em 1975-, explicou que fazia um imenso esforço para estudar algo que não lhe agradava nem um pouco. Hoje, o historiador marxista diz ter o mesmo sentimento, "eu não gostava da burguesia vitoriana e ainda não gosto, embora apreciasse o dinamismo daquele tempo". À essa impressão, porém, vem adicionando, nos últimos anos, mais uma, a nostalgia. 

"Agora, quando comparo o século 19 com o 20, sinto simpatia pelo modo como aqueles homens acreditavam no progresso. Foi um século de esperança. E essa minha nostalgia cresce à medida que o tempo passa e vejo, com pessimismo, o que vem acontecendo", diz. 

Hobsbawm, 92, conversou com a Folha por telefone, de Londres, justamente sobre a reedição no Brasil de sua trilogia sobre o século 19 ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios"), já um clássico da historiografia sobre o período, pela editora Paz e Terra -que também relançará em 2010 outro título do historiador, "Bandidos". 

Na trilogia, Hobsbawm analisou o que chamou de "longo século 19", período que vai de 1789 a 1914. Começa com as revoluções europeias que definiram a expansão do capitalismo e do liberalismo no planeta -a Francesa e a Industrial inglesa- e vai até as vésperas da Primeira Guerra Mundial. 

Apesar dos ataques que sofre por ainda defender a bandeira do comunismo, os três volumes de Hobsbawm são reimpressos todos os anos na Inglaterra, tendo sua explicação sobre o tema se imposto como uma espécie de cânone. 

Hobsbawm é com frequência procurado para comentar temas do presente -algo que seus críticos tampouco perdoam. Agora, às vésperas do aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim (em novembro), seu conhecimento sobre os tempos que estudou e vivenciou, assim como suas convicções políticas, são novamente trazidos ao debate. 

"A queda do Muro foi o fim de uma era. Não só para a Europa do Leste, mas para o mundo inteiro. O capitalismo chegou a seu limite e a a crise econômica mundial indica claramente o fim de um ciclo." 

Contudo, o historiador considera que as discussões sobre o episódio estão muito centradas em tentar entender por que a experiência comunista fracassou, quando o que deveria estar na pauta é o futuro do Ocidente. Para ele, o mundo pós-Guerra Fria ainda não fez uma necessária autocrítica. 

Leia trechos da entrevista que Eric Hobsbawm concedeu à Folha: 

O que mais deveria ser discutido no aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim? 

A celebração é oportuna porque o capitalismo agora chegou a seu limite. A crise econômica mundial é o fim de um ciclo, que começou a ruir quando caiu o Muro em Berlim. No Leste Europeu, vejo dificuldade em rompimento com o legado comunista. Mas é o Ocidente quem deve refletir mais sobre o que ocorreu na Guerra Fria e o que pode ser feito para evitar um novo colapso. 

As "Eras" são consideradas um exemplo de boa análise histórica dedicada a um amplo período. O sr. acha que falta ambição a historiadores hoje? 

Para fazer história com uma perspectiva maior, é preciso ser um intelectual maduro. Hoje, os jovens historiadores gastam muito mais tempo em suas especializações. Quando estão aptos a dar um passo maior, hesitam. A história equivocadamente se afastou da "história total" que fazia Fernand Braudel [1902-1985].
O sr. começa "A Era dos Impérios" contando uma história autobiográfica (a do encontro de seus pais no Egito) e então propõe uma reflexão sobre história e memória. Quão diferente foi escrever este volume, que se refere a passagens mais próximas do seu olhar no tempo, do que os anteriores?
Neste livro tive de trabalhar com o que chamo de "zona de penumbra", onde se misturam nossas lembranças e tradições familiares com o que aprendemos depois sobre determinado período. Não é fácil, pois trata-se de um território de incertezas e em que há um elemento afetivo. Por outro lado, trata-se de uma oportunidade de estimular aquele que lê a pensar sobre como seu próprio passado está relacionado com a história.
Em seu novo livro ("Reappraisals"), o historiador britânico Tony Judt escreveu um ensaio sobre o senhor ("Eric Hobsbawm and the Romance of Communism"). Neste, mostra admiração por seu conhecimento, mas faz uma severa crítica: "para fazer o bem no novo século, nós devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo. Hobsbawm se recusa a mirar o demônio na cara e chamá-lo pelo nome". Como o sr. responderia a seu colega?
A crítica de Judt não se justifica. O que ele quer é que eu diga que estava errado. Em "A Era dos Extremos", eu encaro o problema, o critico e condeno. Não tenho problemas em dizer que a Revolução Russa causou dor e sofrimento à população russa. Porém, o esforço revolucionário foi algo heroico. Uma tentativa de melhorar a sociedade como não se viu mais na história. Me recuso a dizer que perdi a esperança.
O sr. havia dito, numa entrevista ao "Independent", que havia alguns clubes dos quais não iria ser sócio nunca, referindo-se aos intelectuais ex-comunistas. Ainda pensa assim?
Não vejo problema quando um intelectual, especialmente de países do Leste Europeu, percebe que a democracia é melhor do que o sistema autoritário em que vivia. É normal a mudança de posição quando surgem fatos novos. O ex-comunista que condeno é aquele que antes militava em grupos de esquerda e que hoje tem uma bandeira única, a de ser anticomunista apenas, esquecendo-se do resto das ideias pelas quais lutava. Também me entristece ver intelectuais jovens, que não passaram pela história dessas lutas, repetindo e tentando tirar benefício desse mesmo tipo de propaganda.
A América Latina está às vésperas de comemorar, em vários países, os 200 anos do início das lutas de independência. Que análise faz do atual momento?
A dependência econômica ainda é um fato, mas politicamente a América Latina é cada vez mais livre. Washington jamais voltará a exercer a influência de antes, tampouco a apoiar golpes ou ditaduras como fez no passado. O que está acontecendo em Honduras é um sinal disso. O Brasil tem papel central nesse processo, uma vez que o México se transforma cada vez mais em apêndice dos EUA.

Qual a sua formação? Qual a sua luta? Qual o seu legado?




Inteligência militante




Por Diego Viana | De São Paulo
Claudio%20Belli%2FValor  Bosi em casa: “O tom equilibrado (de Nabuco) produz um efeito de maturidade psicológica e moral que faz bem ao leitor de hoje”
Joaquim Nabuco é um dos principais atores da formação do Brasil. Por décadas, lutou pela abolição da escravidão, dizendo, profeticamente, que ela permaneceria "por muito tempo como a característica nacional" do país. Depois da queda do Império, fundou com Machado de Assis a Academia Brasileira de Letras e dedicou-se à diplomacia.
Enquanto viveu nos Estados Unidos e no Reino Unido, o autor de "Um Estadista do Império" foi divulgador da obra de Luís de Camões. Ao fim da vida, produziu as memórias que compõem "Minha Formação", republicado agora no Brasil pela Editora 34.
Nas memórias, o componente político e o literário de Joaquim Nabuco se fundem, como assinala Alfredo Bosi na sua apresentação à obra. O paulistano Bosi, que ocupa a cadeira 12 na academia fundada por Nabuco, é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo e autor da "História Concisa da Literatura Brasileira" (1970).
Como Joaquim Nabuco, a atuação de Bosi não se restringe a um campo. Coordena o grupo de pesquisa em Cultura e Literatura do Instituto de Estudos Avançados, da USP, onde edita a revista "Estudos Avançados". Outro ponto de encontro entre Alfredo Bosi e Joaquim Nabuco decorre de seu livro "Dialética da Colonização" (1992), em que discute a formação do Brasil desde o padre Anchieta, no século XVI, até a atualidade. O trabalho foi agraciado com o Prêmio Casa Grande e Senzala, conferido pela Fundação Joaquim Nabuco. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
"As raízes da exploração e da opressão ainda não foram arrancadas do solo econômico e político das sociedades contemporâneas"
Valor: As memórias de Joaquim Nabuco iluminam o personagem histórico? São um documento da época ou devemos nos ater ao caráter literário?
Alfredo Bosi: "Minha Formação" deriva de uma reconstrução do percurso cultural e militante de Nabuco, com ênfase nas razões do abolicionismo, de que foi um dos mais vigorosos defensores. Há no livro uma coerência de perspectivas políticas, que se podem definir como o limite do nosso liberalismo democrático, oposto ao liberalismo escravista e excludente, que era, no fundo, um conservadorismo renitente. O tom equilibrado dos seus julgamentos produz um efeito de maturidade psicológica e moral que faz bem ao leitor de hoje, agredido pela irresponsabilidade de nossa vida política e de boa parte da mídia.
Valor: Nabuco é uma das grandes figuras na formação do Brasil como nação. Sua atuação vai da historiografia à diplomacia, da política à literatura. Figuras desse vulto pertencem ao passado?
Bosi: Quando nos debruçamos sobre a biografia e a obra de Nabuco e as comparamos com a dos nossos homens públicos, não podemos deixar de sentir uma nostalgia pelo que parece irremediavelmente perdido. Mas, ao longo do século XX, intelectuais progressistas como Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, entre outros, deixaram marcas e discípulos. É nosso dever puxar os fios que atam o passado ao presente, em vez de apenas deplorar as carências de que vem sofrendo a inteligência militante brasileira.
Valor: Quão profundamente está enraizado o legado de Nabuco, que foi um brasileiro não hegemônico, isto é, abolicionista e liberal?
  Nabuco (à dir., de camisa clara), em 1906: ele "é um escritor excepcional no quadro dos estilistas rebuscados do seu tempo. Tudo nele é transparente", afirma Bosi
Bosi: Nabuco e seus inspiradores ou companheiros de geração - Tavares Bastos, André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama, Joaquim Serra, José Bonifácio o Moço, Rui Barbosa, Castro Alves... - foram figuras de resistência no contexto político do Segundo Reinado. Mas sua influência intelectual e ética foi breve, pois a Proclamação da República, franqueando o poder às oligarquias estaduais, não levou adiante as propostas mais avançadas daquele liberalismo democrático. Como acontece hoje com a inteligência de esquerda, seu prestígio nos meios intelectuais é considerável, mas está longe de abalar os pilares do nosso capitalismo selvagem.
Valor: Se a luta, hoje, não é pela abolição, persiste uma falha basilar no Brasil quanto aos direitos humanos. Que lições podemos tomar do movimento abolicionista?
Bosi: As exigências formuladas sob o nome de Direitos Humanos prolongam a luta democrática, cujo início pode datar-se das revoluções inglesa, francesa, americana (século XVIII) e dos vários movimentos socialistas e anarquistas desencadeados a partir de meados do século XIX. Nem seria justo omitir a perseverança dos filantropos evangélicos no combate à escravidão: Joaquim Nabuco, ligado à Anti-Slavery Society, muito lhes deve. Quase todos os direitos sociais e políticos foram conquistados ao longo desses dois séculos e meio. Mas as raízes da exploração e da opressão ainda não foram arrancadas do solo econômico e político das sociedades contemporâneas. O Brasil não é, porém, um caso isolado: os conflitos que aqui explodem também ocorrem em outros países, apesar das diferenças de cultura e estilo de vida.
Valor: O senhor cita uma interpretação psicanalítica à alteração na desinência do engenho Massangano(a) no texto de Nabuco e sugere um recalque do lado africano do engenho, ressurgindo em um escravo fugido. Como devemos entender os mecanismos desse recalque?
Bosi: Acho sugestiva a interpretação psicanalítica ou psicossocial que Lélia Coelho Frota deu à ambivalência do nome do engenho em que Nabuco passou a sua infância. A desinência masculina (Massangano) teria a ver, no inconsciente do memorialista Nabuco, com a estrutura escravista do engenho. A feminina (Massangana), com o lado matriarcal e benigno da madrinha do menino, que o criou até os 8 anos, quando ele partiu do engenho e foi morar com os pais no Rio. Não sei até que ponto devo confiar nessa interpretação, mas, "se non è vero, è bene trovato".
"O subdesenvolvimento e a macaqueação dos costumes estrangeiros não devem impedir-nos de ver nossa capacidade de invenção cultural"
Valor: Nabuco diz que "não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra". O que implica esse imperativo, depois de 125 anos?
Bosi: A frase de Nabuco é exemplar e significa: é preciso instituir o trabalho digno do adjetivo "livre" com que se designa o trabalho assalariado. Mas não só: seria preciso apagar os vestígios de injustiça e humilhação que o cativeiro iria deixar, como deixou. Hoje essa tarefa tem aspectos particulares: é preciso defender, a todo custo, as exigências codificadas na legislação trabalhista, ameaçada pelas investidas da desregulamentação neoliberal. E levar a bom termo a reforma agrária, proposta literalmente presente em Nabuco.
Valor: O jovem Nabuco se diz abolicionista para prestar um serviço à "raça generosa entre todas", ou seja, com fundamento sentimental. Já no texto "A Escravidão", ele emprega a argumentação racional do direito à propriedade sobre o corpo. Como conjugar as duas posições?
Bosi: A contradição é aparente. O afeto profundo que a convivência com os escravos de Massangana despertou no menino Joaquim motivou o jovem a lutar pela abolição: são raízes emotivas que tantas vezes ditam a nossa conduta de adultos. Quanto às razões objetivas, Nabuco valeu-se de uma argumentação jurídica, mostrando que a escravidão feria o direito de propriedade do próprio corpo, que era subtraído ao cativo. Ele usou sagazmente um argumento dos escravistas (o "sagrado direito de propriedade") para derrotá-los no próprio campo retórico...
Valor: Joaquim Nabuco e Machado de Assis foram próximos e fundaram, juntos, a Academia Brasileira de Letras. Se Machado queria uma academia puramente literária e Nabuco, mais generalista, com cientistas e outros intelectuais, pode-se dizer que Nabuco prevaleceu?
Bosi: A proposta de Nabuco, feita em carta a Machado de Assis e aprovada pelos confrades na Academia Brasileira de Letras, era a da inclusão de figuras notáveis da cultura e da vida pública brasileira no quadro da nova instituição. É provável que não fosse esse o ideal de Machado, que, mais de uma vez, se pronunciou pelo caráter prioritariamente literário da vida acadêmica. Mas Machado não discutiu nem resistiu. Tinha "tédio à controvérsia", expressão da sua personagem, o Conselheiro Aires.
"Os atos de violência e barbárie que estamos presenciando não são fatos isolados. Têm a ver com um sistema político pseudodemocrático"
Valor: Joaquim Nabuco é lembrado mais por seu legado político do que pela atuação literária. Qual é o estatuto do Nabuco divulgador de Camões, memorialista, escritor?
Bosi: É difícil distinguir na obra de Nabuco o componente político do literário. Em uma obra memorialista como "Minha Formação", o político está presente ao historiar sua luta liberal e abolicionista. Digamos que foi esse o objetivo maior do seu projeto como homem público. Mas a memória não se exprime sem a configuração de imagens penetradas de sentimentos. Imagens e sentimentos são o corpo e a alma da forma literária. No antológico capítulo "Massangana", encontramos Nabuco escritor, sensível, reflexivo, mas cioso da clareza que aprendeu na leitura atenta dos escritores franceses do século XIX. Nabuco é um escritor excepcional no quadro dos estilistas rebuscados do seu tempo. Tudo nele é transparente.
Valor: Nabuco comenta o conflito entre suas influências europeia e americana. São as duas grandes hegemonias dos últimos séculos, período de formação do Brasil como país periférico. Fala-se, hoje, na ascensão do país como potência autônoma; qual seria o lugar dessas influências nesse quadro?
Bosi: A pergunta recapitula as grandes intersecções que o Brasil viveu desde o Descobrimento. Primeiro, a intersecção com a metrópole portuguesa no período colonial. Depois, a intersecção deu-se com as culturas hegemônicas, francesa e inglesa. Enfim, no século XX, com o estilo de vida e a linguagem americana. Não convém isolar o Brasil desses grandes ciclos culturais. Tampouco a noção de periferia deve cobrir toda a nossa vida pública e privada. Basta analisar de perto a obra de grandes artistas, como Aleijadinho, Portinari e Volpi, ou o romance de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ou a poesia de [Manuel] Bandeira, [Carlos] Drummond [de Andrade], Cecília Meireles, para libertar-nos do complexo de inferioridade e de eterno "atraso estrutural". O subdesenvolvimento econômico e a macaqueação dos costumes estrangeiros são fatos que pesam, no Brasil e fora do Brasil, mas não devem impedir-nos de ver nossa capacidade de invenção cultural.
Valor: Nabuco diz também que "o verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade", no espírito do liberalismo do século XIX. Como seria a releitura dessa frase em tempos de globalização, para manter uma posição de conciliação em meio à costura conflituosa entre o local e o mundial?
Bosi: Os exemplos da resposta anterior atestam a capacidade de interação criativa entre a realidade local e modelos que a globalização cultural está sempre divulgando em um mundo centrado na dinâmica do mercado. Talvez seja um bom começo pensar que o Brasil não só recebe, mas também oferece ao sistema globalizado projetos e produtos concebidos aqui. Esse dar e tomar e esse intercâmbio, que a internet potencia, talvez dissipem, com o tempo, a impressão de que nações e povos estão submersos na indiferenciação global.
Valor: O senhor define a escravidão no tempo de juventude de Nabuco como "fato social total". O fato social possui também uma dimensão atávica, que se manifestaria na truculência da relação entre o poder e a população no Brasil?
Bosi: Como Nabuco mostra cabalmente, a escravidão investia todos os setores da população, não só os trabalhadores e seus proprietários, mas também o Estado, a Igreja, as relações públicas e privadas. Os atos de violência e de barbárie que estamos presenciando não são fatos isolados ou efeito de conjunturas econômicas locais. Têm a ver com um sistema político pseudodemocrático, baseado na representação precaríssima do cidadão no quadro das instituições legislativas e executivas. Se a democracia representativa é mesmo o melhor dos piores regimes, talvez se deva melhorá-lo um pouco, insistindo na democracia participativa, como a que se tentou em alguns municípios que conseguiram elaborar orçamentos públicos com participação do cidadão.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Estado Mercado e Sociedade Civil - 2

Vou dar continuidade ás minhas ideias anteriores, mesmo sabendo que são capengas, frouxas e inconclusivas. Mas me ajudam a pensar. Vale antes de mais nada apontar que um dos pensadores citados por Boaventura de Souza Santos, guru de meu texto anterior, afirma que esta divisão em Estado, Mercado e Sociedade Civil é própria do modernismo, falha e falida. Quem tiver 20 minutos de sua vida para pensar, o vídeo abaixo é maravilhoso:


Bom. Hoje pretendo fazer uma coisa simples. Definir alguns termos e mostrar uma imagem, para aqueles que como eu gostam de ver coisas desenhadas para poder pensar e refletir. Em primeiro lugar precisamos estar de acordo sobre as ideias de regulação e emancipação. Ou seja, que em nossa sociedade há forças que agem para que as coisas continuem do mesmo jeito e outras que querem mudar, transformar e destruir criativamente. 

Harmonia, progresso e desenvolvimento são palavras facilmente associáveis ao projeto do modernismo. Para que estes aspectos 'evoluíssem' em 'harmonia' na avenida das conquistas sociais é preciso equilíbrio entre regulação e emancipação e influências benignas e construtivas entre os aspectos que compõe cada um dos lados da figura prometida, abaixo:


Vale ressaltar que Boaventura não usa os termos acima, nem fala da relação indivíduo coletivo. Ele fala de lógicas e racionalidades, mas uma foto é uma foto, uma imagem é uma imagem. Dois lados, divididor por três, com duas ideias em cada um quadrante. Doze aspectos. Ótimo número.

Vale também deixar registrado que da mesma maneira que deveria haver influências entre os aspectos de baixo da linha e os de cima, deveria haver entre eles. O Estado deveria ajudar na regulação do mercado e a família e seus hábitos e rotinas idem. A racionalidade científica cada vez se mistura mais com a racionalidade estético expressiva e cada vez sofre mais influências da racionalidade do direito, da moral e da ética. E assim vamos.

Acho que por hoje é só. Ideias simples, à procura de discussão. A parte 3 já está no caldeirão e fala em especial da relação incestuosa entre Mercado e Estado, que acaba provocando o lento ruir dos pilares do modernismo. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Elogio ao Ócio

Antes de dar continuidade aos pensamentos sobre Estado, Mercado e Sociedade Civil, um lindo texto que recebi.

Elogio ao Ócio
Bertrand Russell  (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertrand_Russell )

Como a maior parte das pessoas de minha geração, eu cresci ouvindo que o ócio é o pai de todos os vícios. Sendo uma criança bastante virtuosa, acreditava em tudo o que me diziam, e minha consciência tem me mantido trabalhando duro até hoje. Mas ainda que a minha consciência tenha controlado as minhas ações, minhas opiniões passaram por uma revolução. Penso que se trabalha demais atualmente, que danos imensos são causados pela crença de que o trabalho é uma virtude, e que nas modernas sociedades industriais devemos defender algo totalmente diferente do que sempre se apregoou. Todos conhecem a estória do viajante que em Nápoles viu doze indigentes deitados ao sol (isto foi antes de Mussolini), e ofereceu uma lira ao mais preguiçoso. Onze deles se levantaram para reivindicá-la, e então ele a dou para o décimo segundo. Foi uma decisão correta. Mas em países que não gozam do do Mediterrâneo o ócio é mais difícil, e uma grande campanha seria necessária para fazê-lo vingar. Espero que, depois de lerem as próximas páginas, os líderes da YMCA comecem uma façam para convencer jovens de bom caráter a não fazer nada. Se isto acontecer, vinha vida não terá sido em vão.
     Antes de avançar em minha argumentação a favor da preguiça, devo me desfazer de uma que não posso aceitar. Sempre que uma pessoa que já tem o suficiente para viver dedica-se a um trabalho comum, como dar aulas ou datilografar, dizem-na que esta conduta tira o pão da boca de outras pessoas, e portanto ela é má. Se este argumento fosse válido, seria necessário somento que todos nós não fizéssemos nada para que todas as bocas tivessem pão à disposição. O que pessoas que dizem estas coisas esquecem é que o que um homem ganha ele geralmente gasta, e ao gastar gera empregos. Desde que um homem gaste a sua renda, ele coloca tanto pão na boca das pessoas ao gastar quanto tira ao ganhar. O verdadeiro vilão, deste ponto de vista, é o poupador. Se ele apenas junta o seu dinheiro, é óbvio que não gerará empregos. Se ele investe sua poupança, o caso é menos óbvio, e surgem casos diferentes. 
     Uma das coisas mais comuns que se faz com a poupança é emprestá-la a algum governo. Considerando-se o fato de que a maior parte das despesas públicas de quase todos os governos civilizados consiste nas dívidas das guerras passadas ou na preparação de guerras futuras, quem empresta seu dinheiro ao governo acha-se na mesma posição do vilão que aluga assassinos de Shakespeare. O resultado líquido de seus hábitos econômicos é aumentar as forças armadas do Estado ao qual ele empresta sua poupança. Obviamente, seria melhor gastar o dinheiro, mesmo que fosse com bebida ou no jogo.
     Mas devo dizer que o caso é bastante diferente quando a poupança é investida em empresas industriais. Quando estas empresas prosperam e produzem algo útil, isto pode ser admitido. Mas, atualmente, ninguém negará que a maioria das empresas estão falindo. Isto significa que uma grande quantidade de trabalho humano, que deveria ter sido devotado a produzir algo que pudesse ser aproveitado, foi gasto ao produzir máquinas que, quando produzidas, ficam ociosas e não beneficiam ninguém. Quem investe sua poupança em negócios fracassados está portanto prejudicando a outros tanto quanto a si mesmo. Se ele tivesse gasto o dinheiro, por exemplo, para fazer festas com seus amigos, eles (podemos esperar) teriam prazer, e também todos aqueles com os quais gastamos dinheiro, como o açouguiro, o padeiro e o fornecedor de bebidas. Mas se ele gasta a poupança (digamos) na construção de ferrovias em lugares onde trens não são desejáveis, ele desviou uma massa de trabalho para canais onde não traz benfícios a ninguém. No entanto, quando se trona pobre devido às falhas de seus investimentos será considerado uma vítima de desmerecida má-sorte, enquanto o alegre esbanjador, que gastou o seu dinheiro filantropicamente, será menosprezado como uma pessoa tola e frívola.
     Tudo isto é preliminar. Quero dizer, com toda a seriedade, que muitos males estão sendo causados ao mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e que o caminho para a felicidade e prosperidade está em uma diminuição organizada do trabalho.
     Antes de mais nada: o que é trabalho? Há dois tipos de trabalho: o primeiro, alterar a posição de um corpo na ou próximo à superfície da Terra relativamente a outro corpo; o segundo, mandar outra pessoa fazê-lo. O primeiro tipo é desagradável e mal pago; o segundo é agradável e muito bem pago. O segundo tipo é capaz de extensão indefinida: há não somente aqueles que dão ordens, mas aqueles que dão conselhos sobre que ordens deveriam ser dadas. Geralmente dois tipos opostos de conselhos são dados simultaneamente por dois grupos organizados; a isto se chama política. A habilidade necessária a este tipo de trabalho não é conhecimento dos assuntos sobre os quais são dados conselhos, mas conhecimento da arte da fala e da escrita persuasiva, isto é, da propaganda.
     Na Europa, mas não na América, há uma terceira classe de homens, mais respeitada do que qualquer uma das outras classes de trabalhadores. Há homens que, pela propriedade da terra, podem fazer outros pagarem pelo privilégio de poderem existir e trabalhar. Estes proprietários de terras são ociosos, e portanto se esperaria que eu os elogiasse. Infelizmente, a sua ociosidade se torna possível pelo trabalho de outros; de fato, seu desejo pelo ócio confortável é historicamente a fonte de todo evangelho do trabalho. A última coisa que eles desejariam é que outros seguissem o seu exemplo. 
     Desde o início da civilização até a Revolução Industrial, um homem podia, como regra geral, produzir com trabalho duro um pouco mais do que o necessário para a subsistência de si próprio e de sua família, ainda que sua mulher trabalhasse pelo menos tanto quanto ele, e seus filhos colaborem assim que tem idade suficiente. O pequeno excedente acima das necessidades básicas não era deixada para aqueles que o produziram, mas era apropriado por guerreiros e sacerdotes. Em tempos de fome não havia excedente; os guerreiros e sacerdotes, entretanto, ainda tinham tanto quanto em outros tempos, e como resultado muitos dos trabalhadores morriam de fome. Este sistema persistiu na Rússia até 1917 [1], e ainda persiste no oriente; na Inglaterra, apesar da Revolução Industrial, ele sobreviveu com pleno vigor através das guerras napoleônicas, e até cem anos atrás, quando a nova classe de manufatureiros chegou ao poder. Na América, o sistema acabou com a revolução, exceto no sul, onde ele persistiu até a Guerra Civil. Um sistema que durou por tanto tempo e acabou tão recentemente naturalmente deixou impressões produndas nas opiniões e mentes dos homens. Muito do que tomamos por certo sobre a desejabilidade do trabalho é derivado deste sistema, que, sendo pré-industrial, não se adeqüa ao mundo moderno. A técnica moderna tornou possível que o lazer, dentro de certos limites, não seja uma prerrogativa de uma pequena classe privilegiada, mas um direito distribuído eqüanimemente pela comunidade. A moral do trabalho é a moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão.
     É óbvio que, nas comunidade primitivas, os camponenes, se dependesse de sua vontado, não entregariam o pequeno excedente para a subsistência de guerreiros e sacerdotes, mas teriam produzido menos ou consumido mais. No início, eles eram forçados a produzir mais e entregar o excedente. Gradualmente, entretanto, descobriu-se que era possível induzir muitos deles a aceitar uma ética segundo a qual era sua obrigação trabalhar duro, ainda que parte de seu trabalho fosse para sustentar o ócio de outros. Deste modo, diminuíram a necessidade de coerção e as despesas do governo. Ainda hoje, 99 por cento dos assalariados britânicos ficariam genuinamente chocados se lhes fosse dito que o rei não deveria ter uma renda maior do que a de um trabalhador. A concepção do dever, historicamente falando, foi um meio usado pelos donos do poder para induzir outros a viver pelos interesses de seus senhores e não pelos seus próprios. Claro que os donos do poder escondem isto de si mesmos ao acreditar que seus interesses coincidem com os interesses maiores da humanidade. Às vezes isto é verdae; donos de escravos atenienses, por exemplo, empregaram parte de seu lazer dando contribuições permanentes à civilização que teriam sido impossíveis sob um sistema econômico justo. O lazer é essencial à civilização, e em outros tempos o lazer para uns poucos somente era possível pelo trabalho de muitos. Mas seu trabalho era valioso não porque o trabalho seja bom, mas porque o lazer é bom. E com a técnica moderna seria possível distribuir o lazer de forma justa, sem prejuízos à civilização. A técnica moderna tornou possível diminuir enormemente a quantidade de trabalho necessário para assegurar as necessidades vitais para todos. Isto se tornou óbvio durante a Primeira Guerra Mundial. Naquele tempo todos os homens nas forças armadas, e todos os homens e mulheres envolvidos na produção de munição, e todos os homens e mulheres envolvidos com espionagem, propaganda de guerra ou escritórios governamentais relacionados com a guerra foram tirados de ocupações produtivas. Apesar disto, o nível geral de bem-estar entre assalariados não-qualificados do lado dos aliados era mais alto do que antes ou mesmo depois da Guerra. O significado deste fato era escondido pelas finanças: empréstimos fizeram parecer que o futuro estava nutrindo o presente. Mas isto, é claro, seria impossível; um homem não pode comer um pão que não existe. A guerra mostrou conclusivamente que, através da organização científica da produção, é possível manter as populações modernas em razoável conforto com uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno. Se, ao final da guerra, a organização científica que foi criada para liberar homens para as guerras e produção de munição fosse preservada, e as jornada de trabalho fosse reduzida para quatro horas, tudo teria ficado bem. Aos invés disto, o antigo caos foi restaurado, aqueles cujo trabalho era necessário voltaram às longas horas de trabalho, e o restante foi deixado à mingua no desemprego. Por quê? Porque o trabalho é um dever, e um homem não deveria receber salários proporcionalmente ao que produz, mas proporcionalmente à virtude demonstrada em seu esforço. 
     Esta é a moral do Estado escravista, aplicada em circunstâncias totalmente diferentes daqueles na qual surgiu. Não é surpresa que o resultado tenha sido desastroso. Façamos uma ilustração. Suponha-se que em um dado momento um certo número de pessoas estajam envolvidas na produção de alfinetes. Elas fazem tantos alfinetes quanto o mundo precisa, trabalhando (digamos) oito horas por dia. Alguém faz uma invenção através da qual o mesmo número de pessoas pode fazer duas vezes o número original de alfinetes. Mas o mundo não precisa mais de alfinetes, dificilmente algum seria comprado por um preço menor. Em um mundo sensato, todos os envolvidos na fabricação de alfinetes passariam a trabalhar quatro horas ao invés de oito, e tudo continuaria como antes. Mas no mundo real, isto seria considerado desmoralizante. Os homens ainda trabalham oito horas, há excesso de alfinetes, alguns empregadores quebram, e metade dos homens previamente ocupados em fabricar alfinetes são despedidos. Há, ao final, exatamente a mesma quantidade de lazer do outro plano, mas a metado dos homens fica totalmente ociosa enquanto a outra metade ainda está sobrecarregada. Deste modo, é assegurado que o lazer inevitável deva causar misério no mundo inteiro ao invés de ser uma fonte universal de felicidade. Pode ser imaginado algo mais insano? 
     A idéia de que os pobres devam ter lazer sempre foi chocante para os ricos. Na Inglaterra, no início do século dezenove, quinze horas era a jornada comum para um homem; algumas vezes crianças trabalhavam tanto quanto, e muito comumente trabalhavam doze horas por dia. Quando alguns intrometidos sugeriram que talvez estas horas fossem exageradas, foi-lhes dito que o trabalho afastava os adultos da bebida e as crianças da marginalidade. Quando eu era criança, pouco depois de os trabalhadores urbanos conquistarem o direito ao voto, certos feriados foram estabelecido por lei, para a grande indignação das classes superiores. Lembro ter ouvido uma velha duquesa dizer: "O que os pobres querem com feriados? Eles tem que trabalhar". Hoje em dia as pessoas não são tão francas, mas o sentimento persiste, e é a fonte de boa parte de nossa confusão econômica. 
     Vamos, por um momento, considerar a ética do trabalho francamente, sem superstição. Todo ser humano, por necessidade, consome, durante sua vida, uma certa quantidade de produtos do trabalho humano. Assumindo, como podemos, que o trabalho é como um todo desagradável, é injusto que um homem consuma mais do que produza. Claro que ele pode fornecer outros serviços que não commodities, como um médico, por exemplo; mas ele deveria fornecer algo em troca de seu sustento. Até este ponto, o dever do trabalho deve ser admitido, mas somente até este ponto. 
     Não pretendo insistir no fato de que, em todas as sociedades fora da URSS, muitas pessoas escaparam mesmo desta quantidade mínima de trabalho, a saber aqueles que herdam dinheiro e todos aqueles que se casam por dinheiro. Não penso que o fato de a estas pessoas ser permitido ser ociosas seja tão perigoso quanto o fato de que se exija dos assalariados a escolha entre a sobrecarga e a privação.
     Se o trabalhador comum trabalhasse quatro horas por dia, haveria o suficiente para todos e não haveria desemprego - assumindo um moderado senso de organização. Essa idéia choca os abastados, porque eles estão convendicos de que os pobres não saberiam como usar tanto lazer. Nos Estados Unidos, os homens freqüentemente trabalham longas horas emsmo quando estão bem financeiramente; tais homens, naturalmente, se idignam com a idéia do lazer para assalariados, exceto na forma do cruel castigo do desemprego; de fato, eles não gostam de lazer nem mesmo para seus filhos. Estranhamente, enquanto querem que seus filhos trabalhem tão duro que não tenham tempo para serem civilizados, eles não se importam que suas esposas e filhas não tenham absolutamente nenhum trabalho. A inutilidade esnobe, que em uma sociedade aristocrática se estende a ambos os sexos, é, sob uma plutocracia, confinada às mulheres; isto, entretanto, não a torna mais sensata. 
     O uso sábio do lazer, deve-se conceder, é produto de civilização e educação. Um homem que tenha trabalhado longas horas a vida inteira fica entendiado se se torna subitamente ocioso. Mas sem considerável quantidade de lazer um homem é privado de muitas das melhores coisas. Não há mais nenhuma razão para que a maior parte da população sofra dessa privação; somente um ascetismo tolo, geralmente paroquiano, nos faz continuar a insistir em excessivas quantidades de trabalho agora que não há mais necessidade.
     No novo credo que controla o governo da Rússia, ainda que haja muitas diferenças com os ensinamentos tradicionais do ocidente, há algumas coisas que são bastante inalteradas. A atitude das classes governantes, e especialmente daquelas que conduzem a propaganda educacional, sobre a dignidade do trabalho, é quase exatamente o que as classes governantes do mundo sempre tem defendido para o que eles chamaram de "pobres honestos". Trabalho duro, sobriedade, força de vontade para trabalhar longas horas por vantagens pequenas, e mesmo submissão à autoridade, tudo isto reaparece; além disso, a autoridade ainda representa a vontade do Juiz do Universo, que, entretanto, é agora chamado por um novo nome, Materialismo Dialético.
     A vitória do proletariado na Rússia tem alguns pontos em comum com a vitória das feministas em alguns outros países. Por séculos os homens concederam a santidade superiror às mulheres, e as consolou for sua inferioridade argüindo que a santidade é mais desejável do que o poder. Finalmente as feministas decidiram que elas teriam ambos, uma vez que as pioneiras entre elas acreditavam em tudo que os homens lhe falavam sobre a desejabilidade da virtude, mas não o que eles lhes falaram sobre a falta de valor do poder político. Algo similar aconteceu na Rússia em relação ao trabalho manual. Por séculos, os ricos e seus sicofantas escreveram elogios ao "trabalho duro honesto", elogiaram a vida simples, professaram a religião que ensina que os pobres tem muito mais chances de ir para o céu do que os ricos, e em geral tentaram fazer trabalhadores manuais acreditar que há uma nobreza especial em alterar-se a posição de corpos no espaço, da mesma forma que os homens tentaram fazer as mulheres acreditarem que elas extraíam uma nobreza especial de sua escravatura sexual. Na Rússia, todos estes ensinamentos sobre o trabalho manual foi levado a sério, com o resultado de que o trabalhador manual é mais honrado do que qualquer outro. Ou seja, em essência, são feitos apelos revivalistas, mas não para os velhos propósitos: eles são feitos para assegurar trabalhadores brutos para tarefas especiais. O trabalho manual é o ideal que é mantido perante os jovens, e é a base de todo ensinamento ético. 
     No presente, possivelmente, isto é para o bem. Um país grande, cheio de recursos naturais, aguarde desenvolvimento, e tem que ser desenvolvido com muito pouco uso de crédito. Nestas circunstâncias, o trabalho duro é necessário, e provavelmente traga uma grande recompensa. Mas o que acontecerá quando chegarmos ao ponto em que todos possam viver confortavelmente sem trabalhar longas horas? 
     No ocidente, temos várias maneiras de lidar com este problema. Não tentamos fazer justiça econômica, de forma que uma grande proporção da produção total vai para uma pequena minoria da população, e boa parte dela simplesmente não trabalha. Devido à ausência de qualquer controle central sobre a produção, produzimos grande quantidade de coisas que não precisamos. Mantemos uma grande percentagem da população trabalhadora ociosa, porque podemos dispensar seu trabalho dando sobretrabalho a outros. Quando todos estes métodos se provarem inadeqüados, temos a guerra: colocamos muitas pessoas a fabricar explosivos, e muitas outras para explodi-los, como se fôssemos crianças que recém descobriram os fogos de artifício. Combinando estes mecanismo, somos capazes, com dificuldade, de manter viva a noção de que uma grande quantidade de trabalho manual intenso é o quinhão inevitável do homem comum. 
     Na Rússia, devido à maior justiça econômica e ao controle central sobre a produção, o problema terá que ser resolvido de forma diferente. A solução racional seria, tão logo as necessidades e confortos elementares possam ser fornecidos a todos, reduzir as horas de trabalho gradualmente, permtindo o voto popular para decidir, a cada estágio, se mais lazer ou mais bens seriam preferíveis. Mas, tendo ensinado a virtude suprema do trabalho duro, é difícil vislumbrar como as autoridades poderiam apontar para o paraíso no qual haverá muito lazer e pouco trabalho. Parece mais provável que eles continuamente achem sistemas novos, pelos quais apresentem que o lazer deve ser sacrificado pela produtividade futura. Eu li recentemente sobre um plano engenhoso elaborado por engenheiros russos, para aquecer o Mar Branco e a costa do norte da Sibéria, colocando uma barragem no Mar Kara. Um projeto admirável, mas sujeito a adiar o conforto dos proletarios por uma geração, enquanto a nobreza do trabalho duro é posto em evidência no meio das geleiras e nevascas do Oceano Ártico. Este tipo de coisa, se acontecer, será o resultado de considerar a virtude do trabalho duro como um fim em si mesmo, ao invés de um meio para um estado de coisas no qual ele não é mais necessário. 
     O fato é que mudar corpos de lugar, ainda que em certa quantidade seja necessário à nossa existência, não é, em absoluto, um dos objetivos da vida humana. Se fosse, teríamos que considerar todo operador de britadeira superior a Shakespeare. Temos sido enganados neste aspecto por duas razões. Uma é a necessidade de manter os pobres aplacados, o que levou os ricos, for milhares de anos, a defender a dignidade do trabalho, enquanto cuidavam eles mesmos de se manterem indignos a este respeito. A outra é o novo prazer no maquinismo, que nos delicia com as espantosas transformações que podemos causar na superfície da Terra. Nenhum destes motivos tem grande apelo ao trabalhador real. Se se pergunta a ele o qual ele acha a melhor parte de sua vida, não é provável que ele dia: "Eu gosto do trabalho manual porque ele me faz sentir que estou fazendo a tarefa mais nobre do homem, e porque eu gosto de pensar o quanto o homem pode transformar o planeta. É verdade que o meu corpo necessitam períodos de descanso, que devo preencher da melhor forma possível, mas eu nunca fico tão feliz quanto quando chega a manhã e eu posso retornar ao trabalho duro do qual provém o meu contentamento". Eu nunca ouvi trabalhadores dizerem este tipo de coisa. Eles consideram o trabalho como ele deve ser considerado, um meio necessário à sobrevivência, e é de seu lazer que eles obtém qualquer felicidade que possam ter.
     Há quem diga que, enquanto um pouco de lazer é prazeroso, os homens não saberiam como preencher seus dias se tivessem somente quatro horas de trabalho nas suas vinte e quatro horas do dia. Considerar isto uma verdade no mundo moderno é uma condenação de nossa civilização; as coisas nunca foram assim. Havia anteriormente uma capacidade de despreocupação e divertimento que foi de certo modo inibido pelo culto à eficiência. O homem moderno pensa que tudo deve ser feito pelo bem de alguma outra coisa, e nunca por seu próprio bem. Pessoas sisudas, por exemplo, continuamente condenam o hábito de ir ao cinema, e nos dizem que isto leva a juventude ao crime. Mas todo o trabalho que se tem para fazer cinema é respeitável, porque é trabalho, e porque traz uma recompensa em dinheiro. A noção de que as atividades desejáveis são aquelas que trazem lucro é uma inversão da ordem das coisas. O açougueiro que lhe fornece carne e o padeiro que lhe fornece pão são dignos de louvor, porque estão ganhando dinheiro; mas quando se saboreia a comida que eles forneceram, se é frívolo, a não ser que se coma somente para ficar forte para o seu trabalho. Falando de maneira geral, diz-se que ganhar dinheiro é bom e gastar dinheiro é ruim. Vendo que são dois lado de uma transação, isto é absurdo; poderia se dizer que chaves são boas, mas fechaduras são ruins. Qualquer mérito que haja na produção de bens deve ser inteiramente retirado da vantagem a ser obtida consumindo-os. O indivíduo, em nossa sociedade, trabalho pelo lucro; mas a finalidade social do trabalho se baseia no consumo do que ele produz. É este divórcio entre o indivíduo e a finalidade social da produção que torna tão difícil aos homens pensar claramente em um mundo no qual fazer lucro é o incentivo da indústria. Pensamos demais na produção, e de menos no consumo. Um resultado é que atribuímos muito pouca importância ao divertimento e à simples felicidade, e que não julgamos a produção pelo prazer que ela proporciona ao consumidor. 
     Quando sugiro que a jornada de trabalho deveria ser reduzida para quatro horas, nãoquero dizer que todo o tempo restante deveria necessariamente ser gasto em frivolidade pura. Quero dizer que um dia de trabalho de quatro horas deveriam ser suficientes para as necessidades e confortos elementare da vida, e que o resto de seu tempo deveria ser seu para usá-lo como achasse conveniente. É uma parte essencial em qualquer sistema social que a educação deva ser levada além do que normalmente é no presente e deveria por objetivo, em parte, prover gosto que iriam tornar um homem apto a usar o lazer inteligentemente. Não estou pensando aqui no tipo de coisa que seria considerada "intelectualizada". Danças camponesas desapareceram exceto em remotas áreas rurais, mas os impulsos que levaram ao seu cultivo ainda devem existir na natureza humana. Os prazeres das populações urbanas se tornaram na maior parte passivos: ver filmes no cinema, assistir jogos de futebol, escutar rádio, e assim por diante. Isto resulta do fato de que suas energias ativas são totalmente gastas com o trabalho; se tivessem mais lazer, iriam aproveitar novamente os prazeres nos quais tem um papel ativo. 
     No passado havia uma pequena classe ociosa e uma grande classe trabalhadora. A classe ociosa desfrutava de vantagens para as quais não havia base em justiça social; isto necessariamente as fez opressivas, limitou sua simpatia, e levou à invenção de teorias para justificar seus privilégios. Isto fez diminuir enormemente a sua excelência, mas apesar disto elas contribuíram com quase tudo do que chamamos de civilização. Ela cultivou as artes e descobriu as ciências; escreveu os livros, inventou as filosofias, e refinou as relações sociais. Mesmo a libertação dos oprimidos foi geralmente iniciada de cima. Sem a classe ociosa, a humanidade nunca teria emergido da barbárie. 
     O método da classe ociosa sem deveres, entretanto, gerou enormes desperdícios. Nenhum de seus membros tinha que aprender a ser trabalhador, e a classe como um todo não era excepcionalmente inteligente. A classe podia produzir um Darwin, mas a ele se opunham dezenas de milhares de proprietários rurais que nunca pensavem em nada mais inteligente do que caçar à raposa e punir invasores de propriedades. No presente, espera-se que as universidades forneçam, de forma mais sistemática, o que a classe ociosa fornecia acidentalmente e como um subproduto. Isto é um grande avanço, mas tem certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente da vida do mundo exterior que os homens que vivem no meio acadêmico tendem a ficar alheios das preocupações e problemas de homens e mulheres comuns; além disso, suas formas de se expressar é geralmente tal que rouba de suas opiniões a influência que elas deveriam ter no público em geral. Outra desvantagem é que nas universidades os estudos são organizados, e o homem que pensa sobre alguma pesquisa original provavelmente será desencorajado. As instituições acadêmicas, portanto, úteis como são, não são guardiãs adequadas para os interesses da civilização em um mundo onde todos fora de seus muros estão ocupados demais para objetivos não-utilitários. 
     Em um mundo em que ninguém seja compelido a trabalhar mais do que quatro horas por dia, todas as pessoas que possuíssem curiosidade científica seriam capazes de satisfazê-la, e todo pintor seria capaz de pintar sem passar por privações, qualquer que seja a qualidade de suas pinturas. Jovens escritores não precisarão procurar a independência econômica indispensável às grandes obras, para as quais, quando a hora finalmente chega, terão perdido o gosto e a capacidade. Homens que, em seu trabalho profissional, tenham se interessado em alguma fase da economia ou governo, serão capazes de desenvolver suas idéias sem a distância acadêmica que faz o trabalho de economistas universitários freqüentemente parecer fora da realidade. Médicos terão tempo para aprender sobre o progresso da medicina, professores não estarão lutando exasperadamente para ensinar por métodos rotineiros coisas que aprenderam na juventude, que podem, no intervalo, terem se revelado falsas. 
     Acima de tudo, haverá felicidade e alegria de viver, ao invés de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão. O trabalho exigido será suficiente para tornar o lazer agradável, mas não suficiente para causar exaustão. Uma vez que os homens não ficarão cansados em seu tempo livre, eles não exigirão somente diversões passivas e monótonas. Ao menos um por cento provavelmente devotará o tempo não gasto no trabalho profissional para objetivos de alguma impotância pública e, como não dependerão destes objetivos para viver, sua originalidade não será tolhida, e não haverá necessidade de adaptar-se aos padrões estabelecidos pelos velhos mestres. 
     Mas não é somente nestes casos excepcionais que as vantagens do lazer aparecerão. Homens e mulheres comuns, tendo a oportunidade de uma vida feliz, se tornarão mais gentis, menos persecutórios e menos inclinados a ver os outros com desconfiança. O gosto pela guerra desaparecerá, parcialmente por esta razão, e parcialmente porque ele envolverá trabalho longo e severo para todos. A boa índole é, de todas as qualidades, a que o mundo mais precisa, e boa índole é o resultado de segurança e bem-estar, não de uma vida de árdua luta. Os métodos modernos de produção nos deram a possibilidade de bem-estar e segurança para todos; escolhemos, ao invés disso, ter sobretrabalho para alguns e privação para outros. Ainda somos tão energéticos quanto éramos antes do surgimento das máquinas; neste aspecto temos sido tolos, mas não há razão para continuarmos sendo tolos para sempre. [1] Desde então, os membros do Partido Comunista conseguiram o privilégio dos guerreiros e sacerdotes.

1932 
Traduzido por Daniel Cunha 





segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Estado, Mercado e Sociedade Civil - 1

Sei que meus posts podem pecar pela falta de ordem e organização de ideias. Pois então estamos no caminho. Ordem e Progresso são postulados da modernidade que vão sendo questionados e desconstruídos. 
     Vamos em frente então, mas de forma caótica e desorganizada. Seguindo não a ordem, mas a pista de minhas leituras, vou me debruçar hoje sobre textos do mago português Boaventura de Souza Santos. Para alguns desconhecido, para alguns um mero sociólogo de esquerda e para outros, com os quais me alinho, um dos maiores pensadores da pós-modernidade.


     Como se pode perceber no link da Wiki acima, a obra do português a quem mais admiro depois de Fernando Pessoa é enorme. Os textos a que aqui me refiro são originários do livro Pela Mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. Não são textos de fácil leitura, de modo que me pareceu útil trazer à tona algum de seus conceitos, ao menos da maneira que eu os entendi. Quem quiser entender diferente, vai ter que se dar ao trabalho de ir lá no original.
     Trata-se de uma coletânea de artigos e palestras. No quarto capítulo começam a se desenhar ideias interessantíssimas. O autor expõe como compreende a transição do moderno para o pós-moderno. Apesar de não ser alemão, Boaventura é um filósofo-sociólogo que progride se amparando nas mais sólidas maneiras de pensar da velha e boa filosofia germânica. Como nos lembra Caetano Veloso:

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão


     Bom, admito que as digressões me afastam de metas. Mas como disse no começo, ordem e progresso são coisas típicas do projeto da modernidade. Que Boaventura nos explica antes de progredir, misturando nossa bela língua com as bases filosóficas de Heidegger, Hegel e Habermas. Apenas para citar alguns com H. 
      O autor português aqui em questão resume o projeto sociocultural da modernidade da seguinte forma. Afirma que ele assenta em dois pilares, um da regulação e outro da emancipação. O primeiro se divide em três princípios, o do Estado, o do mercado e o da comunidade. Já o pilar da emancipação se constitui por três lógicas de racionalidade: a racionalidade moral-prática da ética e do direito; a racionalidade cognitiva-instrumental da ciência e da técnica e; a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura.
     Aqui um parenteses com interpretações minhas. Vamos à origem ou ao significado possível das palavras regulação e emancipação no texto de Boaventura. Pesquiso agora rapidamente na internet e em diferentes autores encontro diferentes maneiras de enxergar o assunto. Vou ficar com a minha, mais simples. 
     Regulação é um fenômeno social pelo qual determinados grupos sociais se propõe a dominar outros por mecanismos estruturantes e de poder, impondo a ordem, fazendo com que as coisas aconteçam sempre de forma previsível e submetida a regras e rotinas. Na ideia  de Boaventura isto se dá por meio de um Estado, de um mercado e uma sociedade civil plenas de contradições como pretendo abordar em outros escrito aqui mesmo. Nos extremos da lógica regulatória estão o caos e a ordem absoluta. 
    Já a emancipação é um fenômeno pelo qual grupos sociais buscam se libertar de mecanismos de opressão impostos pelas estruturas e regras acima. Isto se dá por meio: da expressão artística e literária; de ações de cunho moral e prático que são formadoras do direito e não fruto de suas sanções estatais, jurídicas e policiais e por último do aumento do conhecimento técnico-científico e as influências deste no dia a dia das pessoas. 
      Pois é o mesmo Santos que aponta para a maneira que se dá o autofagismo do projeto da modernidade. O equilíbrio dos pilares acima era fundamental para o projeto, bem como um intercâmbio harmonioso entre as lógicas. No entanto, a partir do momento que ele chama de capitalismo desorganizado (outros chamariam de neoliberalismo), ocorre o seguinte, conforme trecho de texto dos autores brasileiros Marcus Pereira e Ernani Carvalho:


     A absorção do pilar da emancipação pelo pilar da regulação se deu através da convergência entre modernidade e capitalismo e a conseqüente racionalização da vida coletiva baseada apenas na ciência moderna e no direito estatal moderno. A sobreposição do conhecimento regulação sobre o conhecimento emancipação se deu através da imposição da racionalidade cognitivo-instrumental sobre as outras formas de racionalidade e a imposição do princípio da regulação mercado sobre os outros dois princípios, Estado e comunidade. Portanto, a emancipação esgotou-se na própria regulação e, assim, a ciência tornou-se a forma de racionalidade hegemônica e o mercado, o único princípio regulador moderno. É o que o autor vai definir como a hipercientificização da emancipação e a hipermercadorização da regulação.

      Tudo isso parece complicado... E é um pouco. Mas, como eu disse em algum lugar antes, é um lento processo meu de colocar coisas no caldeirão, para saber por onde começar. Este é um diálogo do qual todos somos chamados a participar hoje em dia. Você é um cidadão da 'ordem' ou do 'progresso'? Quer participar da estruturação do da desestruturação do status quo por meio do Estado (tendo um emprego público ou participando ativamente do público, do mercado (sendo empresário ou empregado) ou da comunidade (sendo síndico de seu prédio, participante de um grupo de sua religião etc). Ou ainda por meio de expressões artístico-culturais, ou pelo influenciamento da ética e do direito pela participação em movimentos sociais. Ou quem sabe pela discussão dos novos papéis da ciência e da técnica. 
     Pretendo voltar breve a todos estes assuntos. Mas deixo um pensamento de Boaventura para concluir: Antigamente a relação entre o desejável e o possível era mais simples. O que era desejável, mas impossível, era entregue a Deus. Quando se aproximava do possível, era entregue à ciência. Hoje em dia, muitas das coisas possíveis são indesejáveis e de muitas das impossíveis precisamos desesperadamente. Tanto Deus quanto a ciência precisam ser partidos ao meio. 


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Estupros sem fim

Em uma semana em que um episódio de violência sexual choca a sociedade carioca, vale lembrar que isto não acontece só em ônibus vazios, mas em hotéis de luxo também... Só que aí tentam inverter as coisas e dizer que foi a vítima quem provocou...


Strauss-Kahn: uma metáfora das práticas do FMI
Leonardo Boff - 02/06/2011

O leitor ou leitora pensará que foi uma tragédia o fato de o Diretor-gerente do FMI, Strauss-Kahn, ter dado asas ao seu vício, a obsessiva busca por  sexo perverso, nu, correndo atrás de uma camareira negra na suite 2806 do hotel Sofitel em Nova York, até agarrá-la e forçá-la a praticar sexo, com detalhes que a Promotoria de Nova York, descreve em detalhes e que, por decência, me dispenso de dizer. Para ele não era uma tragédia. Era uma vítima a mais, entre outras, que fez pelo mundo afora. Vestiu-se e foi direto para o aeroporto. O cômico foi que, imbecil, esqueceu o celular na suite e assim pôde ser preso pela polícia ainda dentro do avião. 

A tragédia ocorreu não com ele, mas com a vítima que ninguém se interessa em saber. Seu nome é Nifissatou Diallo, da Guiné, africana, muçulmana, viúva e mãe de uma filha de 15 anos. A polícia encontrou-a escondida atrás de um armário, chorando e vomitando, traumatizada pela violência sofrida pelo hóspede da suite, cujo nome sequer conhecia. A maior parte da imprensa francesa, com cinismo e indisfarçável machismo, procurou esconder o fato, alegando até uma possível armadilha contra o futuro candidato socialista à Presidência da República. O ex-ministro da cultura e educação, Jacques Lang, de quem se poderia esperar algum esprit de finesse, com desprezo, afirmou:”Afinal não morreu ninguém”. Que deixe uma mulher psicologicamente destruida pela brutalidade do Mr. Strauss-Kahn não conta muito. Finalmente, para essa gente, se trata apenas de uma mulher e africana. Mulher conta alguma coisa para este tipo de mentalidade atrasada, senão para ser mero “objeto de cama e mesa”? 

Para sermos justos, temos que ver este fato a partir do olhar da vítima. Ai dimensionamos seu sofrimento e a humilhação de tantas mulheres no mundo que são sequestradas, violadas e vendidas como escravas do sexo. Só uma sociedade que perdeu todo o sentido de dignidade e se brutalizou pela predominância de uma concepção materialista de vida que faz tudo ser objeto e mercadoria, pode possibilitar tal prática. Hoje, tudo virou mercadoria e ocasião de ganho desde o bens comuns da humanidade, privatizados (commons como água, solos, sementes), até órgãos humanos, crianças e mulheres prostituidas. Se Marx visse esta situação ficaria seguramente escandalizado, pois para ele o capital vive da exploração da força de trabalho mas não da venda de vidas. No entanto, já em 1847 na Miséria da Filosofia intuía:”Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalieável se tornou objeto de troca, de tráfico e podia alienar-se. O tempo em que as próprias coisas que até então eram comunicadas, mas jamais trocadas, dadas, mas jamais vendidas: adquiridas mas jamais compradas como a virtude, o amor, a opinião, a ciência e a consciência, em que tudo passou para o comércio. Reina o tempo da corrupção geral e da venalidade universal....em que tudo é levado ao mercado”.

Strauss-Kahn é uma metáfora do atual sistema neoliberal. Suga o sangue dos paises em crise como a Islândia, a Irlanda, a Grécia, Portugal e agora a Espanha como fizera antes com o Brasil e os paises da América Latina e da Asia. Para salvar os bancos e obrigar a saldar as dívidas, arrasam a sociedade, desempregam, privatizam bens públicos, diminuem salários, aumentam os anos para as aposentadorias, fazem trabalhar mais horas. Só por causa do capital. O articulador destas políticas mundiais, entre outros, é o FMI, do qual Strauss-Kahn era a figura central. 

O que ele fez com Nafissatou Diallo é uma metáfora daquilo que estava fazendo com os paises em dificuldades financeiras. Mereceria cadeia não só pela violência sexual contra a camareira mas  muito mais pelo estupro econômico ao povo, que ele articulava a partir do FMI. Estamos desolados.





quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Desenvolvimento Sustentável ou Sustentabilidade?

Encontro hoje no Valor Econômico excelente entrevista com nosso representante na Rio+20, o embaixador André Aranha Corrêa do Lago. Me fez recordar algumas coisas que aprendi recentemente. Durante a minha banca de qualificação de doutorado o Professor Barbieri me alertou para o uso irrefletido da palavra Sustentabilidade. Afirmou com todas as letras que havia interesses escusos, forças ocultas diriam outros, por trás do 'roubo' da palavra desenvolvimento. 
      Como todo pesquisador tem alma de detetive, ou deveria ter, precisei me aprofundar no tema e encontrei de fato profundos embates paradigmáticos. Diferentes visões de mundo que novamente se encontram para tentar dialogar, depois de Estocolmo 1972, Nairobi 1982, Rio de Janeiro 1992 e no meio de tudo isso o Relatório Brundtlant, chamado de Nosso Futuro Comum (Our Common Future). http://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_Brundtland
   Bom, abaixo então trecho de meu doutorado e trechos da entrevista do embaixador:

A lógica econômica ainda é colocada, mesmo que de forma velada, como ponto mais importante do chamado tripé da sustentabilidade (econômico, ambiental e social), sem que seus pressupostos sejam profundamente questionados. Trata-se da questão do lucro como principal objetivo organizacional a serviço da sociedade, em uma lógica neoliberal ligada, por exemplo, ao pensamento de autores como Friedman (1970), sendo o lucro considerado apenas à partir da relação entre vendas e custos e despesas, ambas monetizadas, de bens e serviços. Como afirmam Hawken, Lovins e Hunter-Lovins (1999, p. 287) estas definições baseadas apenas em moeda corrente são reducionistas, pois, “As necessidades humanas básicas podem ser satisfeitas por uma combinação de produtos e serviços com formas de organização social e política, normas e valores, espaços e contextos, comportamentos e atitudes”.
Antes de falar de desenvolvimento sustentável, tema mais adiante abordado no nível organizacional, é necessário entender o termo desenvolvimento em si. Este é frequentemente tratado como sinônimo de crescimento econômico (VEIGA, 2010). Foi, no entanto a partir dos anos 60 do século passado, que passa a ser sentida com clareza a necessidade de distinguir crescimento econômico de desenvolvimento. Arrighi (1997) já apontava para o fato de que crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) de modo nenhum implicava maior acesso das populações pobres a bens materiais, sociais e culturais. A argumentação de Arrighi (1997), no entanto, “comete o simplismo de usar o PNB per capita para medir o desenvolvimento” (VEIGA, 2010, p. 22). Outros autores críticos do ‘mito do desenvolvimento’ não têm esta visão quantitativa do mundo, típica dos gurus da economia neoclássica. Uma visão que ignora “[...] processos qualitativos histórico-culturais, o progresso não linear da sociedade, as abordagens éticas e até prescindem dos impactos ecológicos” (ibid).
Desenvolvimento econômico não implica, portanto, desenvolvimento da sociedade como um todo. Veiga (2010, p. 18) sugere que foi para por fim a esta ambiguidade que a o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) lançou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como uma forma de “[...] evitar o uso exclusivo da opulência econômica como critério de aferição.” O autor sugere que por trás do pensamento econômico tradicional talvez esteja uma maneira ‘mecânica’ de pensar, apoiada na física, que isola o pensamento econômico de assunções históricas e condicionantes ecológicas.
Ainda segundo Veiga (2010, p. 51) “A prevalecente suposição de que o sistema econômico poderia atingir um ‘ótimo’ sempre ignorou a união entre sistemas econômicos e bióticos, além de desdenhar a existência de limites naturais”. Propõe então o autor brasileiro que sejam rejeitadas as duas respostas simplórias, que traduzem o desenvolvimento como crescimento econômico ou como ilusões utópicas e aponta a obra de Sachs (2002, 2004) como a que melhor consegue evitar “[...] as tentações enganosas do otimismo ingênuo e do pessimismo estéril.” Alerta antes para o fato que renunciar à ideia de desenvolvimento e usar apenas o termo sustentabilidade pode ser “[..] uma armadilha ideológica inventada para perpetuar as assimétricas relações entre as minorias dominantes e as maiorias dominadas, nos países e entre países.”
Jacobi (2006, p. 4) entende que o termo Desenvolvimento Sustentável (DS) surgiu no contexto do enfrentamento da crise ambiental, configurada pela degradação sistemática de recursos naturais e pelos impactos negativos desta degradação sobre a saúde humana. DS diz respeito também, além das preocupações ambientais, a um esforço de geração de novos conceitos no âmbito da ciência econômica, como o de ‘eficiência social’ e ‘ecoeficiência’ dos mercados. Segundo Sachs (2004), estes novos desafios transcendem às eficiências alocadoras, inovadoras e keynesianas, associadas a Adam Smith, Schumpeter e Marnard Keynes. “Não resta dúvida que o capitalismo é muito eficiente em termos de alocação, porém deficiente em termos da eficiência social e ecoeficiência” (SACHS, 2004, p. 42). Seria exatamente a introdução destas eficiências que geraria um desenvolvimento includente, fundamentado no trabalho decente para todos. Vale aqui lembrar o pensamento de Giddens (1984) e suas reflexões sobre a relação entre estruturas e indivíduos: mercados estruturalmente ineficientes provocam a ‘reação’ e a ‘ação’ de indivíduos, que se esforçam para mudá-los e, se for o caso, destruí-los.
O desenvolvimento sustentável seria, então, uma maneira de pensar ligada a conceitos de desenvolvimento econômico, uma expressão que provém do edifício intelectual da economia do pós-guerra, em contraposição a um simples conceito de crescimento econômico. Alguns autores críticos, pautados naquela compreensão de desenvolvimento ligada a aspectos quantitativos da economia, consideram o termo impregnado de noções da economia neoliberal (BANERJEE, 2003). Este autor entende que da mesma forma que se deu com o termo ‘desenvolvimento’, ‘desenvolvimento sustentável’ possui práticas, políticas e significados que resultam em prejuízos para a maior parte da população mundial, em especial, para as populações rurais do Terceiro Mundo. Para Banerjee (2003), termos como sustentabilidade e desenvolvimento sustentável continuam sendo construídos no âmbito do pensamento colonialista e explorador.
Söderbaum (2008) entende que o conceito de DS pode ser atrelado a três lógicas. A primeira, estritamente econômica e técnico-científica que propõe a articulação do crescimento econômico e a preservação ambiental sem grandes mudanças de base na sociedade ou nos sistemas produtivos. O autor sueco chama esta lógica por trás do DS de business as usual, e entende que os atores que abraçam esta ideologia como crentes de que não há na realidade grandes problemas ambientais e sociais acontecendo e que eles são exagerados. Esta maneira de pensar faz com que não sejam necessárias grandes mudanças no paradigma dominante e que se possa continuar a ênfase em crescimento econômico e inovação tecnológica, deixando a regulação de problemas ambientais aos mecanismos de controle já existentes na sociedade. Uma segunda maneira de pensar sobre o DS segundo Söderbaum (2008) é a de que tanto a humanidade quanto as organizações enfrentam problemas ambientais e sociais sérios e inéditos e que exigem respostas criativas. Esta visão reconhece que ação imediata é necessária, mas entende que o paradigma atual, em sua ideologia, maneira de produzir e escopo institucional precisa apenas ser modificado e alterado para dar conta da situação. A terceira corrente de pensamento segundo Söderbaum (2008) é a interpretação radical do DS, que prega e exige uma mudança em larga escala, de paradigmas, ideológica e institucional. No âmbito desta terceira corrente estão aquelas ideias que apontam o neoliberalismo e a economia neoclássica como raízes do problema. Ainda é uma corrente marginalizada, uma vez que “Companhias transnacionais e políticos com uma orientação neoliberal tem sido bem sucedidos há algum tempo em definir problemas e influenciar o diálogo sobre desenvolvimento” (SÖDERBAUM, 2008, p. 17).
As grandes corporações e os governos, ao menos em suas ações discursivas e em suas práticas comunicativas, admitem a situação de ‘insustentabilidade’ da sociedade e da espécie humana, caso permaneçam no mesmo rumo, fazendo exatamente como fazem. A questão aqui é que, para colocar em prática as novas maneiras de agir apregoadas pelas grandes corporações, será exigida uma série de mudanças: novas formas de trabalho, novos conhecimentos, novas habilidades, novas atitudes. O grande desafio é que possivelmente sejam necessárias novas reflexões, novos significados sobre o que seja trabalho, novas concepções sobre o que seja uma empresa e sobre sua importância e papel na sociedade.
Mesmo usando o termo sustentabilidade não se pode deixar de lado, portanto, a noção de DS. Este termo é o que serve de pano de fundo para os que defendem avanço econômico, social, cultural, tecnológico e político sem degradação ambiental. Uma ideia-força, portanto, alinhada com as necessidades de países menos desenvolvidos. Como propõe Söderbaum (2008, p. 18-19) a busca é por um conceito ‘razoável de DS, uma vez que “progressivamente se reconhece a necessidade de algo novo para lidar com os desafios da sustentabilidade”.  

Não se pode ter dois padrões de consumo, para país rico e pobre
Valor Econômico Por Daniela Chiaretti | De Brasília


O embaixador André Aranha Corrêa do Lago, de 52 anos, é um economista apaixonado por arquitetura e um diplomata que fala direto. "O que não se pode aceitar é que os países desenvolvidos considerem que nós temos que repensar o que é padrão de consumo de classe média, e eles, não", diz, referindo-se às negociações da Rio+20, a conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, em junho, no Rio.
     Lago, que serviu nas embaixadas brasileiras em Madri, Praga, Washington, Buenos Aires e na missão brasileira junto à União Europeia, em Bruxelas, diz claramente que a Rio+20 é uma conferência sobre desenvolvimento sustentável, com seus pilares econômico, social e ambiental. Não é só frase de efeito. "Os europeus dizem que o Brasil está tirando o foco da Rio+20", menciona. Lago não é explícito, mas trata-se de uma referência ao esforço europeu, encabeçado pela França, de aprovar na Rio+20 a criação de uma agência ambiental mundial, ideia que o Brasil não apoia. "A Rio+ 20 não é uma conferência ambiental, é sobre desenvolvimento sustentável. Quem está tirando o foco da Rio+20 são eles, colocando apenas o pilar ambiental na mesa."


Valor: As pessoas não têm ideia clara do que é a Rio+20. O senhor pode explicar?
André Aranha Corrêa do Lago: A Rio+20 pertence a uma família de conferências das Nações Unidas que só acontece com pouca frequência. São conferências de questionamento geral e trabalham com o longo prazo. A Rio+20 têm várias dimensões, mas sua definição formal é que é uma conferência da ONU que vai reunir todos os países do mundo para debater temas que só são discutidos neste nível de profundidade a cada 10 ou 20 anos. É completamente diferente da conferência de Copenhague (em 2009, na Dinamarca) ou da de Durban (em 2011, na África do Sul), que são as reuniões anuais da negociação de mudança do clima.
Valor: O que pode sair dela?
Lago: Por ser rara e ambiciosa, podem sair daí coisas como na Rio 92 que, no momento em que acontecem a gente não se dá conta do quanto são importantes.
Valor: Quais coisas?
Lago: Quando foi assinada a Convenção do Clima, na Rio 92, ninguém podia imaginar que 20 anos depois ela se tornaria a principal negociação econômica no mundo. Mas essas conferências, ao trabalharem com o longo prazo, têm também enorme grau de incerteza. Existem processos que param no meio e outros que inspiram toda uma geração.
Valor: O senhor mencionou outro dia que o "espírito de Estocolmo" está sendo sentido de novo, e de maneira forte, nas negociações da Rio+20. O que quer dizer?
Lago: Quando ocorreu a 1ª conferência ambiental da ONU, em Estocolmo, em 1972, no período preparatório os países em desenvolvimento reagiram muito mal à introdução da questão do ambiente porque interpretavam que era uma deturpação do debate. Que o debate legítimo da ONU, desde os anos 50, era o desenvolvimento. E, graças ao Brasil e há alguns outros em desenvolvimento, caiu a ficha e a questão do ambiente passou a ser ligada diretamente à do desenvolvimento. O consenso foi de que não se podia desligar os dois.
Valor: Este espírito voltou nas negociações da Rio+20?
Lago: O espírito pré-Estocolmo é a visão de que o problema do mundo é que tem pobre demais e poucos recursos naturais. Hoje isso está retornando.
Valor: Bom, mas não é verdade que no mundo há pobres demais e recursos naturais de menos?
Lago: Agora a preocupação é outra: os pobres estão virando classe média. E não se achava que isso ia acontecer tão rápido. Entre China, Brasil, Índia e outros países em desenvolvimento estamos botando centenas de milhões de pessoas na classe média. Estas pessoas estão consumindo mais, o que é uma ótima notícia. E também é verdade que isso representa um desafio para o ambiente. Mas a solução não é restringir o consumo só deles. A solução é um esforço mundial para que não haja uma divisão do gênero: a classe média americana pode ter quatro carros e classe média indiana tem que andar de bicicleta.
Valor: A sinalização dos países desenvolvidos é "vocês chegaram à classe média na hora errada?"
Lago: A sinalização é a seguinte: "Nós inventamos esse conceito de classe média meio para a gente. Não é para vocês, não". Isso não é possível. Os países em desenvolvimento, com toda razão, consideram que, é claro que temos todos que nos preocupar com as emissões e as consequências da entrada de milhões de pessoas na classe média mundial. Mas não podemos aceitar que vá haver duas classes médias, duas categorias diferentes.