segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sobre dívidas, dúvidas e certezas

Maravilhosa matéria do Valor. Se você não puder ler tudo, deixo esta frase, a final do texto:
Margaret Atwood fecha o ciclo da dívida moral e financeira recuperando a ideia, presente nas mais antigas religiões, de uma dívida do ser humano para com a natureza. "Extraímos os recursos para toda a loucura financeira. Derramamos petróleo no oceano e destruímos os sistemas naturais. Toda essa dívida terá de ser paga."

ValOR ECONÔMICO
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As muitas caras da dívida


Por Diego Viana | De São Paulo
  O personagem Tom Rakewell escapa por pouco à prisão por falta de pagamento
A escritora canadense Margaret Atwood foi considerada visionária em 2008. A crise de Wall Street, disparada pelo escândalo dos "subprimes" e a quebra do banco Lehman Brothers, acabara de estourar quando ela lançou o livro "Payback: A Dívida e o Lado Sombrio da Riqueza" (publicado no Brasil pela Rocco em 2009). Com base em palestras para a rádio canadense, proferidas em 2007, a escritora expunha seu estranhamento diante de uma sociedade fundada sobre o endividamento irresponsável dos cartões de crédito e das hipotecas, que resultaria em desastre, primeiro nos EUA, depois na Europa.
Não contente em colocar o dedo nas feridas do século XXI, Margaret enveredou pelos múltiplos sentidos do conceito de dívida e crédito, de suas origens religiosas até o débito da humanidade com o planeta. "As pessoas me perguntavam como eu tinha previsto a chegada da crise. Mas eu faço a pergunta ao contrário: como era possível não ver? Os sinais estavam todos muito evidentes."
No mês passado, "Payback" estreou no Festival de Sundance. A diretora Jennifer Baichwal diz que o filme não segue o livro literalmente. "O que ele faz é tomar as ideias que estão ali e encontrar vozes humanas viscerais que as ilustrem. Como devemos? Para quem devemos? Como pagamos?" Ela colheu depoimentos ao redor do mundo. De Raj Patel, economista e ativista anglo-americano, até os envolvidos em sangrentas lutas de família na Albânia, passando por ecologistas e barões da mídia no Canadá, todos têm algo a dizer sobre débito e crédito.
O conceito de dívida é inquietante, mas também é visto como fundamental para a compreensão do desenvolvimento de vínculos sociais
Margaret Atwood está entre vários autores que se debruçaram sobre a questão da dívida desde que a crise financeira irrompeu nos EUA. Entre os tradicionais guias de finanças pessoais, estudos com jovens que contraíram empréstimos nos EUA e propostas para contornar o sufocamento financeiro na Europa, encontram-se textos que procuram invadir mais profundamente os conceitos de dívida e crédito.
São sociólogos, antropólogos, linguistas e filósofos, que investigam as origens de uma relação na qual uma pessoa se obriga a pagar algo a outra, no futuro, por um benefício de que vai fruir imediatamente. Um ponto sensível do problema da dívida, que envolve também seu correlato, o crédito, é a avaliação do papel do credor. Por um lado, as manifestações que tomaram ruas em Nova York, Londres e Madri no ano passado apontam os grandes agentes do mercado financeiro como responsáveis pelas dificuldades econômicas de grandes contingentes da população. Por outro, instituições financeiras juntam recursos e permitem sua alocação para fins produtivos. Esse nó talvez não possa ser deslindado.
A partir de uma leitura de "Fausto", tragédia em verso do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio da corretora Rio Bravo, afirma que o desenvolvimento econômico, fundado sobre as finanças, possui uma ambiguidade moral inextirpável. Franco escreveu o prefácio e o posfácio do livro "Dinheiro e Magia", do economista suíço Hans Christoph Binswanger. Binswanger parte do texto de Goethe para ler a economia moderna como sucessora da alquimia. (Leia entrevista na página 22).
  Tom Rakewell já está preso, e mesmo no cárcere seus companheiros tentam tomar seu dinheiro. As imagens pertencem a uma sequência pintada pelo inglês William Hogarth entre 1732 e 1733, apresentando o caminho de um irresponsável rumo à desgraça; em duas etapas, o pintor representa o perigo da dívida
"Há uma carga de ironia em 'Fausto', em que Goethe demoniza as finanças", diz Franco. "Quem orienta a emissão de títulos é Mefisto, mas é uma força criadora. Viabilizou progressos, que são colocados sempre de forma ambígua, para manter a ironia de que é o Demônio que produz aquele efeito. Ele rouba terras do mar, constrói canais, são coisas nunca inconfundivelmente boas, para reforçar a ambiguidade e ser mais instigante."
Margaret afirma ter se dado conta de que o grande tema da literatura inglesa no século XIX não era tanto o amor, como ela acreditava, mas a dívida. "A Feira das Vaidades" [W. M. Thackeray], "O Morro dos Ventos Uivantes" [Emily Brontë] e "Um Conto de Natal" [Charles Dickens] retratam personagens às voltas com hipotecas, títulos vencidos e credores à porta. A exceção é o texto de Dickens: a dívida, nesse caso, não é monetária, mas social. O ricaço Ebenezer Scrooge é confrontado com a miséria alheia, quando ele mesmo enriqueceu graças à generosidade de alguém. Mas há pesquisas que sugerem que essas duas formas da dívida têm um vínculo estreito.
O antropólogo americano David Graeber, da universidade britânica Goldsmiths, lançou escreveu o livro "Debt: the First 5000 Years" (Dívida: Os Primeiros Cinco Mil Anos), para traçar em 534 páginas a história do endividamento humano. Suas pesquisas, iniciadas em 2009, revelaram que uma proporção considerável das guerras, ao longo da história, teve como pano de fundo a cobrança de dívidas. No sentido inverso, "as revoltas da Antiguidade tinham todas mais ou menos o mesmo programa: cancelamento de dívidas e redistribuição de terras".
O termo "dívida", do Egito faraônico até o boom do crédito nos EUA, "sempre esteve envolto em uma atmosfera confusa", segundo o antropólogo. Em sânscrito, hebraico e aramaico, "dívida", "culpa" e "pecado" são denominados com uma só palavra. E assim como a palavra alemã para dívida é "schuld" (culpa), a origem da expressão "thank you" (obrigado) em inglês vem do verbo "think" (pensar), a partir da expressão "vou pensar no bem que você me fez". Em português, a expressão é ainda mais evidente: "'Obrigado' remete a uma dívida de obrigação". Em sociedades caçadoras, nas quais a cessão de objetos e favores não é o oposto de uma troca comercial, o agradecimento, diz Graeber, chega a ser uma ofensa.
  
O antropólogo cita o debate sobre o cancelamento de dívidas de países pobres e se surpreende com a noção de que débitos contraídos têm necessariamente de ser pagos. "Não é uma afirmação econômica, mas uma afirmação moral." Uma das principais funções dos empréstimos é que os emprestadores (bancos, por exemplo) apliquem recursos de seus clientes em atividades econômicas que, espera-se, darão lucro. "Mas se o emprestador tiver a garantia de que vai receber de volta, ele vai fazer empréstimos irresponsáveis", argumenta o antropólogo. Economicamente, o pagamento de um empréstimo depende do risco, que é calculado pelo próprio emprestador. Moralmente, trata-se de uma obrigação.
A linguista russa Natalya Davidko, do Instituto Touro de Moscou, busca nos textos bíblicos a demonstração de como o conceito de dívida tem implicações morais diversas. "Embora a dívida monetária não seja um pecado na Bíblia, é algo a ser evitado", ela escreve, "porque, quando tomamos dinheiro emprestado, alguém controla nossa vida". No Livro de Provérbios, lê-se que "o rico domina sobre os pobres e o que toma emprestado é servo do que empresta"; em Romanos, "a ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros".
Embora esteja cercado de aspectos inquietantes, o conceito de dívida também aparece, para vários autores, como fundamental para a compreensão do desenvolvimento de vínculos sociais. Graeber, por exemplo, explica como a ascensão do Estado centralizado, na Antiguidade, dependeu do endividamento da população. No Egito, os impostos cobrados pelo imperador constituíam dívidas fundadoras, que obrigavam as pessoas a um trabalho antecipado, para fazer frente às exigências imperiais. Na Mesopotâmia, ao contrário, o poder era descentralizado e a unificação tomou corpo com os empréstimos a juros entre grandes grupos sociais.
No século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche levou ao extremo a hipótese da dívida como origem de vínculos sociais no livro "Genealogia da Moral". Para ele, toda moralidade tem origem na cobrança de dívidas com ameaça de violência e a relação de obrigação do devedor é o vínculo social fundamental. A partir das teses de Nietzsche, o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato publicou, em novembro, o ensaio "A Fábrica do Homem Endividado" (La Fabrique de l'Homme Endetté).
George Whiteside/Doubleday Publicity / George Whiteside/Doubleday PublicityO livro da escritora canadense Margaret Atwood sobre dívida foi transformado em filme, que estreou no Festival de Sundance
Para Lazzarato, a relação por trás do endividamento é uma relação política fundamental, não simplesmente um dispositivo econômico, mas uma "técnica de governo e de controle das subjetividades", que torna o tempo mais previsível e organiza comportamentos. "O paradigma do social não é dado pela troca, seja econômica ou simbólica, mas pelo crédito. Na base da relação social não está a igualdade da troca, mas a assimetria entre crédito e dívida, que precede a produção e o trabalho assalariado, tanto histórica quanto teoricamente".
O papel histórico das relações de dívida e crédito é explorado pelo economista Michael Hudson, da Universidade de Missouri. "A tendência de que as dívidas cresçam mais rápido do que a capacidade de pagamento da população parece ser uma constante na história", afirma. "A dívida polariza a riqueza e cria uma classe credora."
A partir do Renascimento, segundo Hudson, a classe credora (ou seja, os banqueiros) retirou seu apoio aos monarcas autocratas, cujas finanças estavam sujeitas às veleidades do tesouro real. O apoio passou às câmaras de representantes e às democracias. "Para que a dívida soberana recaia sobre a população como um todo, os eleitos é que deveriam instituir os impostos para pagá-la." Na análise de Hudson, a história da economia moderna começa nesse ponto.
O momento dessa passagem coincide com uma outra transformação histórica, visível em duas telas de mesmo nome. "O Banqueiro e Sua Mulher" é obra de dois autores flamengos. Em 1514, Quentin Massys pintou o casal como representante da avareza, com aspecto desagradável. Um quarto de século mais tarde, em 1539, Marinus van Reymerswaele pintou rigorosamente a mesma cena, mas como uma elegia dos comerciantes que faziam a glória de Flandres.
As pinturas refletem a mudança da mentalidade europeia em relação às finanças. Na Idade Média, o empréstimo a juros era banido pela religião, com base em versículos bíblicos, como Êxodo 22:25, que diz: "Se emprestares dinheiro ao meu povo, não te haverás com ele como credor; não lhe imporás juros". No final das Cruzadas, diz Hudson, a Europa foi inundada com ouro e prata trazidos do Oriente Médio e, mais tarde, da América, impulsionando o comércio e, por extensão, as finanças. A partir desse momento, os teólogos espanhóis da escola de Salamanca encontraram meios de valorizar os empréstimos e a cobrança de juros.
Reprodução / ReproduçãoNa versão de Marinus van Reymerswaele para "O Banqueiro e sua Mulher" (1539), a representação do financista é positiva
Livros como o de Margaret Atwood lançam luz sobre um mundo em que a soma das dívidas públicas bate em US$ 38,8 trilhões. Em vários países desenvolvidos, segundo dados da consultoria McKinsey, o conjunto daquilo que o governo, as empresas, os bancos e as famílias devem uns para os outros chega a cinco vezes o valor do produto interno bruto - os casos extremos são Japão e Reino Unido. Na periferia da Europa, depois de um período de convergência e estabilidade induzido pela criação da moeda única, os investidores exigem retornos expressivos em títulos públicos. No caso da Grécia, da Irlanda e de Portugal, retornos muito mais vantajosos do que antes da instauração do euro: até 35% para títulos de dez anos do Estado grego.
De 2008 para cá, o termo "dívida" entrou para o rol das preocupações mundiais, e não apenas no campo financeiro. Em julho, o aspecto político da crise de endividamento se tornou evidente quando o governo dos EUA teve dificuldade em aprovar no Congresso a elevação do teto da dívida do país. As dificuldades impostas à Casa Branca pelos adversários republicanos foram interpretadas como uma forma de chantagem.
No plano internacional, o sentido político da dívida se tornou visível com a constatação de que os EUA, outrora maiores credores do planeta, tinham se tornado os maiores devedores, com um balanço de pagamentos negativo em US$ 467,6 bilhões no final de 2011. Seu maior credor é a China, cujo balanço está positivo em US$ 360,5 bilhões. O dado é um pano de fundo para a declaração do presidente americano, Barack Obama, de que as relações bilaterais entre os dois países serão determinantes para definir o século XXI.
Em resposta às medidas de austeridade que visavam reconquistar a confiança dos investidores e reativar a capacidade grega de se financiar, protestos multiplicaram-se na Grécia, com frequência e intensidade crescentes. E o ponto comum às manifestações "Occupy" de 2011 foi a rejeição ao peso considerado excessivo do mercado financeiro na economia: em cartazes, os manifestantes exibiam o desconforto por estarem endividados demais.
Estudos como os de Graeber e Lazzarato parecem implicar que, sem dívidas, a atividade econômica não é possível. Essa leitura é reforçada pela estrutura dos mercados financeiros contemporâneos. Segundo o economista Anderson Caputo Silva, especialista principal em mercado de capitais do Banco Mundial e organizador do livro "Dívida Pública: a Experiência Brasileira", um país não consegue desenvolver seu sistema financeiro sem que primeiro o governo se disponha a contrair dívidas que forneçam liquidez aos bancos. "Sem o ponto de referência na dívida pública, fica impossível avaliar os portfólios dos investidores. Mesmo países que não precisam se financiar contraem dívidas, que ajudam a organizar o mercado de capitais.
O tema da dívida pública ilustra a articulação entre o campo financeiro e o político, estudados por Lazzarato, Graeber e outros. O Brasil obteve sua independência sob o signo de duas dívidas. Por um lado, ao partir de volta para Portugal, d. João VI levou consigo os ativos do Banco do Brasil, que ele mesmo fundara em 1808. Depois do 7 de setembro, o reconhecimento do novo país por sua antiga metrópole foi obtido através de uma pesada promessa de pagamento.
"Todos os processos de independência contam com algum acordo financeiro, a não ser quando há guerra, e mesmo a guerra termina com um acordo", diz Gustavo Franco. O caso do Haiti é exemplar: mesmo depois de suas tropas derrotarem os franceses, o país foi obrigado a assumir uma dívida impagável - como um preço pela liberdade.
Para Margaret Atwood, o sentimento de dever alguma coisa e ter obrigações é mais antigo do que parece. "As primeiras religiões estão repletas de referências a uma dívida com o cosmo, com a terra, com a natureza", ela argumenta. "Não nos damos à luz nós mesmos. Não nos alimentamos sozinhos quando somos crianças pequenas. Como seres sociais, estamos sempre trocando coisas: um 'por favor' aqui, um 'obrigado' ali, ou, ao contrário, um assassinato aqui, uma vingança ali."
O desequilíbrio que leva à dívida, para a escritora, é o mesmo desequilíbrio que permite ao universo funcionar. "Física e quimicamente, o desequilíbrio está no âmago do universo. Ele cria a complexidade. Um universo perfeitamente equilibrado seria inerte. Graças ao desequilíbrio, podemos respirar, por exemplo." A dívida, nessa perspectiva, é uma maneira de transformar o desequilíbrio originário da sociedade em produtividade e crescimento. "É como a dívida dos artistas para com seus inspiradores: eles a pagam com novas criações artísticas." Mas a criatura pode se voltar contra o criador, numa inversão de expectativas muito comum na literatura - como o aprendiz de feiticeiro, o Golem, a estátua que ganha vida e pode esmagar seu criador.
No tempo de seus pais, ela conta, dívida era um assunto quase tabu. Contrair empréstimos era visto como "uma oportunidade muito perigosa, a ser abordada com parcimônia". Com a invenção dos cartões de crédito, o endividamento se expande. "Pesquisando para o livro, aprendi muito sobre a neurologia da dívida. Gastar acima das posses com o cartão de crédito não é registrado como uma perda de dinheiro, só como a aquisição de um bem maravilhoso. É só quando as pessoas não conseguem pagar seus impostos e hipotecas que os números virtuais têm um impacto realmente físico."
Artigo publicado na revista "Social Science Research" explora a psicologia da dívida entre jovens americanos. De autoria dos sociólogos Rachel Dwyer, Randy Hodson e Laura McCloud, a pesquisa "Youth Debt, Mastery, and Self-Esteem" ("Dívida de Jovens, Controle e Auto-Estima") demonstra como a dívida passou de perigo a necessidade. "Neste início de século, os jovens adultos crescem numa era de acesso sem precedentes ao crédito, mas crescimento vagaroso de ganhos. O resultado é uma alta dramática do endividamento", diz Rachel.
Como resultado, o momento em que um americano entre 18 e 24 anos contrai sua primeira dívida, seja para consumir com o cartão de crédito, seja com um empréstimo estudantil, se tornou uma espécie de rito de passagem. "Ambos os tipos de dívida aumentam a autoestima e a sensação de controle dos jovens", diz a socióloga. "Para os jovens, a experiência da dívida é um investimento no futuro." Essa sensação é mais forte entre os jovens de origem humilde, que se veem, enfim, capazes de aceder plenamente à sociedade de consumo. Tanto para os ricos quanto para os pobres, porém, a satisfação proporcionada pelas dívidas começa a desvanecer a partir dos 24 anos: é o momento em que passam a ter de pagá-las.
Margaret Atwood fecha o ciclo da dívida moral e financeira recuperando a ideia, presente nas mais antigas religiões, de uma dívida do ser humano para com a natureza. "Extraímos os recursos para toda a loucura financeira. Derramamos petróleo no oceano e destruímos os sistemas naturais. Toda essa dívida terá de ser paga."

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