terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Continuando as reflexões sobre política e poder

Do blog:  http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/11/pacificacao-ou-militarizacao.html

SÁBADO, 19 DE NOVEMBRO DE 2011


Pacificação ou militarização?

Novamente, os tanques tomaram as ruas cariocas, junto com as tropas armadas até os dentes, os helicópteros, e todo um cenário que tanto agrada à Rede Globo, e aos imbecis que não sabem onde termina a novela e começa sua própria vida. Agora, foi a Rocinha a comunidade invadida…
Num momento como esse, é preciso denunciar novamente  que as “ocupações” dos morros pelos militares e policiais não têm nada a ver com o combate ao tráfico (de drogas e de armas) ou ao “crime organizado”, e sim com uma reorganização dessas atividades tão lucrativas. Além disso, passam pela reorganização da própria cidade, sempre pautada pela especulação imobiliária e pelo interesse dos grandes grupos econômicos, e nunca pelos interesses da população pobre.
Mas, como de costume, nesse tipo de situação acontece uma mágica; os governantes e a grande mídia transformam invasão em “ocupação; militarização em “pacificação”; já o terror é chamado de “ordem”; o medo vira “respeito”; a especulação imobiliária passa a ser “interesse social”, e por aí vai. Todo mundo sabe que a maior parte do dinheiro que o tráfico movimenta não fica na favela, mas sim no bolso dos grandes empresários, banqueiros, políticos, juízes, etc., pelo mundo afora. Outra parte importante vai para a polícia. 
Não é à toa que as milícias, que aterrorizam várias favelas cariocas, e estão se expandindo cada vez mais (não só na cidade do Rio de Janeiro, mas em vários estados do Brasil) são formadas principalmente por policiais, na ativa ou não, cada uma ligada a vereadores, deputados estaduais, federais, juízes, membros da Prefeitura, do Governo estadual, etc. E essas milícias estão envolvidas não somente com a extorsão, mas com o tráfico de drogas e de armas.
O verdadeiro crime organizado está na direção do Estado e das grandes empresas. E os que fazem a tal “política de segurança” são os mesmos que lucram com as chamadas atividades criminosas. 
Haja hipocrisia…

A droga, os nóia, os preguiçosos e os manipuladores

Os recentes episódios envolvendo a chamada cracolância e a desocupação do Pinheirinho acabaram ganhando novos contornos para mim, ao ler mais uma daquelas aulas de Foucault (2011) às quais me referi em um dos primeiros textos aqui. Para parir estas ideias vou me focar no episódio da desocupação da cracolândia, que ilustra bem estes pensamentos. 
     Na aula de 19 de janeiro de 1983, primeira hora, Foucault relata as aventuras e desventuras, mentiras e verdades de Íon, filho de Xuto, em busca de seus direitos políticos plenos, na velha e  boa Atenas. Como diz o autor francês, Íon "[...] quer ter o direito de falar, de dizer tudo, de falar a verdade e de usar sua fala franca". No entanto, Íon não era um filho puro de Atenas. Naquela época Atenas possuía uma legislação extremamente severa e só era ateniense quem fosse filho de pai e mãe atenienses.
     Mesmo entre os atenienses 'puros' havia disputas sobre quem deveria ter o direito de falar. De um lado havia as opiniões de Cléon, democrata, que pretendia que todos os filhos de Atenas tivessem este direito. De outro lado, a tendência aristocrática era representada por Nícias, para quem o direito de fazer política e ter voz devia ser reservado a uma certa elite.
      Íon tinha lá seus problemas próprios para poder se fazer ouvir, ligados à esta questão de sua origem, à sua falta de 'pureza étnica'. Precisava provar que era filho de filhos de deuses. Estas coisas gregas, trágicas e fortes, inimagináveis em temos atuais, nos quais se expulsam garotos negros de restaurantes e os deixam na esquina.  Para quem quiser saber mais sobre isto, será preciso procurar o texto de Eurípede que se chama exatamente Íon. Ou se informar no site: http://www.afropress.com/noticiasLer.asp?id=%202877
     Independente disto, havia na Atenas da época, na opinião de Eurípedes, três classes de cidadãos. Esta divisão não tem a ver com ter direitos político-econômicos, como ser escravo ou não, ter direito a voto ou não.  Diz respeito à divisão dos cidadãos que são capazes, que poderiam votar e definir os destinos de Atenas. Eurípedes distingue em primeiro lugar os adýnaton, os impotentes, dos dynámemoi, dos que podem alguma coisa. A divisão em três se dá porque estes últimos se dividem em dois grupos: aqueles que se calam e não se ocupam da coisa pública e aqueles que se servem da coisa pública.
     A primeira classe de cidadãos, os impotentes, no caso da cracolância são os nóia. Para quem não sabe este é o termo pelo qual os próprios viciados se denominam, pelos resultados do uso da droga, que provoca delírios persecutórios. São aqueles que, conforme o texto de Eurípedes e como também os expulsos do Pinheirinho, são "Essa multidão incapaz, essa massa de cidadãos que são cidadãos juridicamente de pleno direito, mas que não tem esta espécie de adicional, que caracteriza a autoridade política."
   A segunda classe são as pessoas do bem e de riquezas, que poderiam mudar a história a tudo assistem, alguma com um sorriso silencioso, outras com um choro contido. Um grupo de sóphos (sábios) que são ricos e bem nascidos, mas não se interessam pelos negócios da cidade, não agem para mudar. Até porque foram criados desde pequeninos com a crença de que o privado é que é bonito e o estatal é lento e ineficiente.
     A terceira classe. os ricos e poderosos, pessoas do bem e pragmáticos, servem-se da cidade e também são sóphos (sábios). Também são bem nascidos e manejam a política e a razão, às vezes por meio de marionetes. Como diz o texto: "[...] têm a cidade, possuem a cidade, controlam a cidade e têm suas honrarias." Convencem o grupo anterior de que agem em nome deles, mas na verdade se opõe claramente à categoria precedente, uma vez que não suportam que lhes façam concorrência.
       Por quem você se posiciona no caso da droga? Os pobres sem poder de expressarem sua voz? Os poderosos que se calam e consentem? Ou os poderosos que se servem do logos e da pólis e exploram inclusive a droga, a corrupção e outros vícios?


Referência:


FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011



     

     

domingo, 29 de janeiro de 2012

A virada para a ação, por uma ciência social transformativa

Em anexo um texto maravilhoso, em direção a uma ciência social mais transformativa e prática. Fico devendo as discussões e encaminhamentos. Mas ao menos já fica aqui no acervo...

http://williamrtorbert.com/content/ActionTurn.pdf


sábado, 28 de janeiro de 2012

O otimismo da incerteza

por Howard Zinn

“A mudança revolucionária não vem como um momento cataclísmico… mas como uma sucessão sem fim de surpresas, movendo-se em zigue-zague em direção a uma sociedade mais decente. Não temos que nos engajar em grandes e heróicas ações para participar do processo de mudança. Pequenos atos, quando multiplicados por milhões de pessoas, podem transformar o mundo. Mesmo se não ”vencermos”, existe diversão e preenchimento no fato de estarmos envolvidos, com outras pessoas boas, em algo que vale a pena. Nós precisamos de esperança. Um otimista não é necessariamente um indiferente, um cantarolador levemente sentimental no meio da escuridão do nosso tempo. Pois ter esperança em tempos ruins não é apenas romantismo bobo. É basear-se no fato de que a história humana é uma história de crueldade, mas também de compaixão, sacrifício, coragem e bondade. O que escolhemos enfatizar nesta complexa história é que irá determinar nossas vidas. Se virmos apenas o pior, ele destrói nossa capacidade de fazer algo. Se lembrarmos daqueles tempos e lugares - e existem tantos - em que as pessoas se comportaram de forma magnífica, isso nos dá energia para agir, e ao menos a possibilidade de mandar esse topo giratório do mundo em uma direção diferente. E se nós agirmos, mesmo de uma forma pequena, nós não precisaremos esperar por um grande e utópico futuro. O futuro é uma sucessão infinita de presentes, e viver agora da forma que acreditamos que os seres humanos devem agir, em oposição a tudo que existe de tuim ao nosso redor, já é por si uma vitória maravilhosa.”



A revolta da burguesia assalariada



   | Blog da Boitempo

 
Recriação do jogo Monopoly instalada por Banksy no acampamento do Occupy London
Por Slavoj Žižek.
Traduzido por Chrysantho Sholl e Fernando Marcelino.
Embora os protestos sociais em curso nos países ocidentais desenvolvidos  pareçam indicar o renascimento de um movimento emancipatório radical, uma análise mais detalhada nos compele a elaborar uma série de distinções precisas que, de alguma forma, embaçam essa clara imagem. Três coisas caracterizam o capitalismo de hoje: a tendência de longo prazo de transformação do lucro em renda (em suas duas principais formas: a renda do “conhecimento comum” privatizado e a renda pelos recursos naturais); o papel estrutural mais forte do desemprego (a própria chance de ser “explorado” em um emprego duradouro é percebida como um privilégio); e a ascensão de uma nova classe que Jean-Claude Milner chama de “burguesia assalariada” [Veja Jean-Claude Milner,Clartes de tout, Paris, Verdier, 2011].
Para explicar a relação entre estas características, comecemos com Bill Gates: como ele se tornou o homem mais rico do mundo? Sua riqueza não tem nada a ver com o custo de produção daquilo que a Microsoft vende (pode-se até mesmo argumentar que a Microsoft paga a seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto), isto é, a riqueza de Gates não é o resultado de seu sucesso em produzir bons softwares por preços mais baixos do que seus concorrentes ou por uma “maior exploração” de seus trabalhadores intelectuais contratados. Se este fosse o caso, a Microsoft teria ido a falência há muito tempo: as pessoas teriam optado massivamente por programas como Linux que são de graça e, de acordo com especialistas, de melhor qualidade que os programas da Microsoft. Por que, então, existem milhões de pessoas que ainda compram Microsoft? Porque a Microsoft se impôs como um padrão quase universal, “quase” monopolizando o setor, uma espécie de personificação direta daquilo que Marx chamou de General Intellect (Intelecto Coletivo), o conhecimento coletivo em todas as suas dimensões, da ciência ao prático know how. Gates se tornou o homem mais rico em algumas décadas através da apropriação da renda pela permissão de que milhões participem na forma do “intelecto coletivo” que ele privatizou e controla.
Deve-se transformar criticamente o aparato conceitual de Marx: por causa de sua negligência em relação à dimensão social do “intelecto coletivo”, Marx não vislumbrou a possibilidade de privatização do próprio “intelecto coletivo”. É isto que está no coração da luta contemporânea pela propriedade intelectual: a exploração tem cada vez mais a forma de renda, ou, como diz Carlo Vercellone, o capitalismo pós-industrial é caracterizado pelo “tornar-se renda do lucro” [Veja Capitalismo cognitivo, editado por Carlo Vercellone, Roma, manifestolibri, 2006]. Em outras palavras, quando, por conta do papel crucial do “intelecto coletivo” (conhecimento e cooperação social) na criação de riqueza, as formas de riqueza se tornam cada vez mais desproporcionais em relação ao tempo de trabalho diretamente empregado na produção, o resultado não é, como Marx parecia esperar, a autodissolução do capitalismo, mas a transformação gradual do lucro gerado pela exploração da força de trabalho em renda apropriada pela privatização do “intelecto coletivo”.    
O mesmo acontece com os recursos naturais: sua exploração é uma das maiores fontes de renda hoje, acompanhada da luta permanente pra saber quem ficará com esta renda – os povos do Terceiro Mundo ou as corporações ocidentais (a suprema ironia é que, para explicar a diferença entre força de trabalho – que, em seu uso, produz mais-valia sobre seu próprio valor – e outras mercadorias – que somente consomem seu próprio valor em seu uso e, portanto, não envolvem exploração -, Marx menciona como exemplo de uma mercadoria ordinária o petróleo, a própria mercadoria que hoje é a fonte de extraordinários “lucros”…). Aqui também não faz sentido vincular as altas e baixas do preço do petróleo com altos e baixos custos de produção ou preços do trabalho explorado – custos de produção são negligenciáveis, o preço que pagamos pelo petróleo é a renda que pagamos para os proprietários deste recurso por conta de sua escassez e oferta limitada.
A consequência deste crescimento na produtividade alavancado pelo impacto exponencialmente crescente do conhecimento coletivo é a transformação do papel do desemprego: embora o “desemprego seja estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo enquanto tal” [Fredric Jameson, em Representing Capital, Londres, Verso Books, 2011, p. 149], o desemprego adquiriu atualmente um papel qualitativamente diferente. Naquilo que, possivelmente, é o ponto extremo da “unidade dos opostos” na esfera da economia, é o próprio sucesso do capitalismo (crescimento produtivo etc.) que produz desemprego (produz mais e mais trabalhadores inúteis) – o que deveria ser uma benção (menos trabalho duro necessário) se torna uma sina. O mercado global é, assim, em relação a sua dinâmica imanente, “um espaço no qual todos já foram, um dia, trabalhadores produtivos, e no qual o trabalho, em todos os lugares, foi aos poucos retirando-se do sistema” [Fredric Jameson, em Valences of the Dialetic, Londres, Verso Books, 2009, p. 580-1]. Isso é, no atual processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados adquire uma nova qualidade além da clássica noção de “exército industrial de reserva”: devemos considerar em relação a categoria do desemprego “aquelas enormes populações, que ao redor do mundo foram ‘expulsas da história’, que foram deliberadamente excluídas dos projetos modernizadores do capitalismo de primeiro mundo e apagadas como casos terminais sem esperança” [Jameson, em Representing Capital, p. 149]: os assim chamados estados falidos (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ecológicos, presos a “rancores étnicos” pseudo-arcaicos, objetos da filantropia e das ONGs, ou (frequentemente os mesmos personagens) da “guerra contra o terror”. A categoria dos desempregados deve assim ser expandida para agregar uma população de largo alcance, dos temporariamente desempregados, passando pelos não mais empregáveis, até pessoas vivendo nas favelas e outras formas de guetos (todos aqueles desconsiderados pelo próprio Marx como “lúmpem-proletariado”) e, finalmente, áreas inteiras, populações ou estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços em branco nos mapas antigos.
Mas esta nova forma de capitalismo não traz também uma nova perspectiva de emancipação? Nisto reside a tese de Hardt e Negri em Multidão: guerra e democracia na Era do Império [Rio de Janeiro: Record, 2005] onde eles pretendem radicalizar Marx, para quem o capitalismo corporativo altamente organizado já era uma forma de “socialismo dentro do capitalismo” (uma espécie de socialização do capitalismo, com os proprietários tornando-se cada vez mais supérfluos), de maneira que seria necessário apenas cortar a cabeça do proprietário nominal e nós teríamos socialismo. Para Hardt e Negri, entretanto, a limitação de Marx foi estar historicamente limitado ao trabalho industrial mecanicamente industrializado e hierarquicamente organizado, razão pela qual a sua visão de “intelecto coletivo” seria como uma agência central de planejamento; somente hoje, com a elevação do trabalho imaterial ao padrão hegemônico, a transformação revolucionária se torna “objetivamente possível”. Esse trabalho imaterial se desdobra entre dois pólos: trabalho (simbólico) intelectual (produção de ideias, códigos, textos, programas, figuras etc. por escritores, programadores…) e trabalho afetivo (aqueles que lidam com afecções corpóreas, de médicos a babás e aeromoças). O trabalho imaterial é hoje hegemônico no sentido preciso em que Marx proclamou que, no capitalismo do século XIX, a produção industrial em larga escala era hegemônica, como a cor específica dando o tom da totalidade – não quantitativamente, mas cumprido um papel chave, emblematicamente estrutural. Assim, o que surge é um inédito vasto domínio dos “comuns”: conhecimento compartilhado, formas de cooperação e comunicação etc. que não podem mais ser contidos na forma da propriedade privada – por quê? Na produção imaterial, os produtos já não são objetos materiais, mas novas relações sociais (interpessoais) – em suma, a produção imaterial já é diretamente biopolítica, produção de vida social.
A ironia é que Hardt e Negri se referem aqui ao próprio processo que os ideólogos do capitalismo “pós-moderno” celebram como a passagem da produção material para a simbólica, da lógica centralista-hierárquica para a lógica da autopóiese e da auto-organização, cooperação multi-centralizada etc. Negri é aqui efetivamente fiel a Marx: o que ele tenta provar é que Marx estava certo, que a ascensão do intelecto coletivo é, em longo prazo, incompatível com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno estão afirmando exatamente o oposto: é a teoria marxista (e sua prática) que permanecem dentro dos limites de uma lógica hierárquica e sob controle centralizado do Estado, e assim não conseguem lidar com os efeitos sociais da nova revolução informacional. Existem boas razões empíricas para esta afirmação: de novo, a suprema ironia da história é que a desintegração do Comunismo é o exemplo mais convincente da validade da tradicional dialética marxista entre forças produtivas e relações de produção com a qual o marxismo contou na sua tentativa de superar o capitalismo. O que arruinou efetivamente os regimes Comunistas foi sua inabilidade em acomodar-se à nova lógica social sustentada pela “revolução informacional”: eles tentaram dirigir esta revolução com um novo projeto de planejamento estatal centralizado de larga escala. O paradoxo, assim, é que aquilo que Negri celebra como chance única de superação do capitalismo, é exatamente o que os ideólogos da “revolução informacional” celebram como ascensão de um novo capitalismo “sem fricção”.
A análise de Hardt e Negri possui três pontos fracos que, em sua combinação, explicam como o capitalismo pode sobreviver ao que deveria ser (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o tornaria obsoleto. Ela subestima a extensão do sucesso do capitalismo contemporâneo (pelo menos em curto prazo) de privatizar o “conhecimento comum”, assim como a extensão com que, mais do que a burguesia, são os próprios trabalhadores que se tornam “supérfluos” (número cada vez maior deles torna-se não somente desempregado, mas estruturalmente inempregável). Além disso, mesmo que seja verdade, em princípio, que a burguesia está progressivamente se tornando desfuncional, deve-se qualificar esta afirmação –  desfuncional para quem? Para o próprio capitalismo. Isto quer dizer que, se o velho capitalismo envolvia idealmente um empreendedor que investia dinheiro (seu ou emprestado) em produção organizada e dirigida por ele próprio, recolhendo o lucro, hoje está surgindo um novo tipo ideal: não mais o empreendedor que possui sua própria empresa, mas o gerente especialista (ou um conselho administrativo presidido por um CEO) de uma empresa de propriedade dos bancos (também dirigidos por gerentes que não possuem os bancos) ou investidores dispersos. Neste novo tipo ideal de capitalismo sem burguesia, a velha burguesia desfuncional é refuncionalizada como gerentes assalariados – a nova burguesia recebe cotas, e mesmo se ela possui uma parte na empresa, eles recebem as ações como parte da remuneração pelo trabalho (“bônus por sua gerência bem sucedida”).
Esta nova burguesia ainda se apropria da mais-valia, mas da forma mistificada daquilo que Milner chama de “mais-salário”: em geral, a eles é pago mais do que o salário mínimo do proletário (este ponto de referência imaginário – frequentemente mítico – cujo único verdadeiro exemplo na economia global de hoje é o salário de um trabalhador numa sweat-shop na China ou na Indonésia), e é esta diferença em relação aos proletários comuns, esta distinção, que determina seu status. A burguesia no sentido clássico, assim, tende a desaparecer. Os capitalistas reaparecem como um subconjunto dos trabalhadores assalariados – gerentes qualificados para ganhar mais por sua competência (razão pela qual a “avaliação” pseudo-científica que legitima os especialistas a ganharem mais é crucial hoje em dia). A categoria dos trabalhadores que recebem mais-salário não está, obviamente, limitada aos gerentes: ela se estende a todos os tipos de especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais, artistas… O excesso que eles recebem tem duas formas: mais dinheiro (para gerentes etc.), mas também menos trabalho, isto é, mais tempo livre (para alguns intelectuais, mas também para setores da administração estatal).
O procedimento de avaliação que qualifica alguns trabalhadores para receberem mais-salário é, claramente, um mecanismo arbitrário de poder e ideologia sem nenhuma ligação séria com a competência real – ou, como diz Milner, a necessidade de mais-salário não é econômica, mas política: para manter uma “classe média” com o propósito de estabilidade social. A arbitrariedade da hierarquia social não é um erro, mas todo o seu propósito, de forma que a arbitrariedade da avaliação cumpre um papel homólogo à arbitrariedade do sucesso de mercado. Isto é, a violência ameaça explodir não quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar esta contingência. É neste nível que se deve buscar pelo que se pode chamar de, em termos um tanto vagos, a função social da hierarquia. Jean-Pierre Dupuy [em La marque du sacre, Paris, Carnets Nord, 2008] concebe a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) cuja função é fazer com que a relação de superioridade não seja humilhante para os subordinados: ahierarquia (a ordem externamente imposta de papéis sociais em clara contraposição ao valor imanente dos indivíduos – eu, portanto, experimento meu menor status social como totalmente independente do meu valor intrínseco); a desmistificação (o procedimento crítico-ideológico que demonstra que as relações de superioridade/inferioridade não estão fundamentadas na meritocracia, mas são resultado de lutas objetivamente ideológicas e sociais: meu status social depende de processos sociais objetivos, não de méritos – como diz Dupuy sarcasticamente, a desmistificação social “cumpre o mesmo papel, em nossas sociedades igualitárias, competitivas e meritocráticas do que a hierarquia nas sociedades tradicionais” [p. 208] – isto nos permite evitar a conclusão dolorosa de que “a superioridade do outro é o resultado de seus méritos e conquistas”; a contingência (o mesmo mecanismo, porém sem a sua forma crítico-social: nossa posição em escala social depende de uma loteria natural e social – sortudos são aqueles que nascem com melhores disposições e em famílias ricas); a complexidade (superioridade ou inferioridade dependem de um processo social complexo independente das intenções ou méritos dos indivíduos – digamos, a mão invisível do mercado pode causar o meu fracasso ou o sucesso do meu vizinho, mesmo que eu tenha trabalhado muito mais e seja muito mais inteligente). Ao contrário do que parece, todos estes mecanismos não contestam ou sequer ameaçam a hierarquia, mas a tornam palatável, uma vez que “o que desencadeia o turbilhão da inveja é a ideia de que o outro merece a sua sorte e não a ideia oposta, a única que pode ser abertamente expressa” [p.211]. Dupuy extrai desta premissa a conclusão (óbvia, para ele) de que é um grande erro pensar que uma sociedade que seja justa e que se perceba como justa será assim livre de todo o ressentimento – ao contrário, é precisamente em tal sociedade que aqueles que ocupam posições inferiores encontraram uma válvula de escape para seu orgulho ferido em violentas explosões de ressentimento.
Aí reside um dos maiores impasses da China hoje: o objetivo ideal das reformas de Deng Xiaoping era introduzir um capitalismo sem burguesia (como classe dominante); agora, entretanto, os líderes chineses estão descobrindo dolorosamente que o capitalismo sem hierarquia estável (conduzida pela burguesia como nova classe) gera permanente instabilidade – portanto, que caminho tomará a China? Mais genericamente, esta é possivelmente a razão pela qual (ex-)comunistas reaparecem como os mais eficientes gestores do capitalismo: sua histórica inimizade com a burguesia enquanto classe se encaixa perfeitamente na tendência do capitalismo contemporâneo em direção a um capitalismo gerencial sem burguesia – em ambos os casos, como Stalin disse a muito tempo, “os quadros decidem tudo” (está surgindo também uma diferença interessante entre a China de hoje e a Rússia: na Rússia os quadros universitários eram ridiculamente mal pagos, eles de fato se confundiam com os proletários, enquanto na China eles são bem remunerados com um “mais-salário” como meio de garantir sua docilidade).                       
Além disso, esta noção de “mais-salário” também nos permite lançar novas luzes sobre os atuais protestos “anti-capitalistas”. Em tempos de crise, o candidato óbvio para “apertar os cintos” são os níveis mais baixos da burguesia assalariada: uma vez que o seu mais-salário não cumpre nenhum papel econômico imanente, a única coisa que permite diferenciá-los do proletariado são seus protestos políticos. Embora estes protestos sejam nominalmente dirigidos pela lógica brutal do mercado, eles efetivamente protestam contra a gradual corrosão de sua posição econômica (politicamente) privilegiada. Lembremos da fantasia ideológica favorita de Ayn Rand (de seu Atlas Shrugged), a de “criativos” capitalistas em greve – esta fantasia não encontra sua realização perversa nas greves de hoje, que em sua maioria são greves da privilegiada “burguesia assalariada” motivada pelo medo de perder seu privilégio (o excedente sobre o salário mínimo)? Não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido à condição proletária. Isto quer dizer: quem ousa se manifestar hoje, quando ter um emprego permanente já se tornou um privilégio? Não os trabalhadores mal pagos (no que sobrou) da indústria têxtil etc. mas o estrato de trabalhadores privilegiados com empregos garantidos (muitos da administração estatal, como a polícia e os fiscais da lei, professores, trabalhadores do transporte público etc.). Isto também vale para a nova onda de protestos estudantis: sua maior motivação é o medo de que a educação superior não mais lhes garanta um mais-salário na vida futura.
Está claro, obviamente, que o enorme renascimento dos protestos no último ano, da Primavera Árabe ao Leste Europeu, do Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não devem definitivamente ser desconsiderados como uma revolta da burguesia assalariada – eles guardam potenciais muito mais radicais, de forma que devemos nos engajar numa análise concreta caso a caso. Os protestos estudantis contra a reforma universitária em curso no Reino Unido são claramente opostos às barricadas do Reino Unido em agosto de 2011, este carnaval consumista de destruição, a verdadeira explosão dos excluídos. Em relação aos levantes do Egito, pode-se argumentar que, no começo, houve um momento de revolta da burguesia assalariada (jovens bem educados protestando contra a falta de perspectiva), mas isto foi parte de um amplo protesto contra um regime opressivo. Entretanto, até que ponto o protesto conseguiu mobilizar trabalhadores e camponeses pobres? Não seria a vitória eleitoral dos islâmicos também uma indicação da base social estreita do protesto secular original? A Grécia é um caso especial: nas últimas décadas surgiu uma nova “burguesia assalariada” (especialmente na administração estatal superdimensionada) graças à ajuda financeira e empréstimos da União Europeia, e muitos dos protestos atuais, mais uma vez, reagem à ameaça de perda destes privilégios.
Além disso, esta proletarização da baixa “burguesia assalariada” vem acompanhada do excesso oposto: as remunerações irracionalmente altas dos grandes executivos e banqueiros (remunerações economicamente irracionais, uma vez que, como demonstraram as investigações nos Estados Unidos, elas tendem a ser inversamente proporcionais ao sucesso da empresa). É verdade, parte do preço pago por essa super remuneração é o fato dos executivos ficarem totalmente disponíveis 24 horas por dia, vivendo assim num estado de emergência permanente. Mais do que submeter estas tendências a uma crítica moralista, deveríamos interpretá-las como a indicação de como o próprio sistema capitalista não é mais capaz de encontrar um nível interno de estabilidade autorregulada e de como esta circulação ameaça sair do controle.       

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Ação entre iguais contra os diferentes

Trecho de texto do Contardo Caligarias, como eu gostaria de tê-lo escrito. Mas lendo coisas inteligentes todos os dias vou progredindo...
Folha de São Paulo: Ilustrada, 19/01/2012 - Contardo Caligaris

A operação cracolândia e o debate que a acompanha na imprensa ilustram as dificuldades do poder na modernidade. Num dos seus melhores seminários (o de 1975, "Os Anormais", Martins Fontes), Foucault mostra que esse poder oscila entre dois modelos: o da lepra e o da peste. Os diferentes e infratores podem ser retirados da circulação, fechados na prisão, na colônia agrícola, no antigo asilo. Esse é o modelo adotado para a lepra; ele segrega no lazareto.
Mas, às vezes, os diferentes e infratores, muito numerosos, espalham-se pelo tecido social de forma que sua segregação seria improvável. É o que acontecia no caso da peste. Os contaminados, então, não eram fechados em lazaretos afastados, mas a cidade era dividida em quadras, que eram vigiadas por, digamos, agentes sanitários: os doentes eram proibidos de deixar seu domicílio, e o governo administrava a vida (e a morte) deles dentro de suas próprias casas.
O modelo da peste tinha duas vantagens: ele permitia gerir intimamente a vida concreta das pessoas, e sua motivação aparente era nobre: "curá-las". Por isso, aliás, ele contaminou o modelo da lepra: quase não há mais detenção (modelo da lepra) que não cultive a ilusão de que ela será, para o detento, uma ocasião de redenção ou de cura (modelo da peste).
Hoje, podemos ser infratores e incômodos, mas raramente somos "ruins" e irrecuperáveis: seremos emendados pelos bons cuidados da sociedade, pois, de fato, éramos (ou melhor, estávamos) apenas "doentes". Será que este modelo nos deixa mais livres? Engano. Atrás da face indulgente do poder que se inspira no modelo da peste (o infrator estava doente, não fez por querer, está "desculpado"), esconde-se uma face especialmente tirânica: qualquer ato dissonante é reconhecido não como fruto de rebeldia ou originalidade, mas como efeito de uma patologia. Você é contra? Você é diferente? Pois bem, você está doente. Não há mais dissenso -só enfermos e loucos.
Voltemos à cracolândia. Talvez a toxicomania, uma vez instalada, seja uma espécie de doença. Mas a escolha inicial de se engajar na droga, será que é uma doença? Consideraremos doente (por alguma disfunção do córtex pré-frontal, por exemplo) qualquer sujeito que não se autorregule como a gente?
Anos atrás, jovem psicanalista, no norte da França, eu me ocupava de adolescentes "problemáticos" pelas drogas que consumiam, pela desistência escolar, por uma criminalidade difusa e pela violência contra os adultos que se opunham a suas vontades. Alguns eram filhos de excluídos, outros inventavam uma marginalidade própria, não herdada.
Um desses jovens escutou pacientemente enquanto eu tentava convencê-lo a frequentar as sessões de terapia e a aceitar a ajuda de uma assistente social, que facilitaria sua reinserção. Quando acabei, ele me disse, pausadamente, olho no olho: "O que lhe faz pensar que eu queira ter uma vida parecida com a sua?".
Conclusão. Podemos tentar curar os "noias", ou seja, esperar suprimi-los de um jeito mais radical do que apenas prendendo-os. De qualquer forma, agimos porque os achamos insalubres para nós.
E peço que ninguém pretenda me convencer que a dita cura, à diferença da segregação ou das porretadas, seria para o bem (ou para a dignidade) deles.
Detalhe. Originalmente, os modelos da lepra e da peste foram maneiras diferentes de lidar com o risco de um contágio. Quando tentamos "curar" vagabundos ou drogados talvez estejamos também reagindo ao risco de um contágio pelas margens sociais. Como assim?
Nunca estamos realmente convencidos de que temos razão de sermos bem pensantes e bem comportados. "Curar" à força os perdidos da cracolândia nos ajuda a evitar a sedução que sua "noite suja" exerce sobre nós.




quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Indignado ou refastelado?

Hoje à noite meu Flamengo joga na Bolívia, almocei bem, minha linda esposa está deitada no sofá... O Carnaval se aproxima, a Portela vai desfilar, estou terminando meu doutorado, tanta coisa parece na paz e bem encaminhada. De onde vem então esta vontade louca de largar tudo, pegar o ônibus para São José dos Campos, colocar um capacete de motociclista na cabeça e fazer um escudo de tonel de plástico e me unir aos desabrigados do Pinheirinho enquanto eles procuram novas áreas para ocupar?
     Na verdade, este é o grande choque paradigmático, o diálogo no meu interior que preciso reconciliar, desbastar e polir. Ou ao menos tornar polido, um diálogo que hoje é violento e conturbado. Ainda mora em mim, aos 55 anos o jovem que foi as passeatas contra a ditadura no Rio de Janeiro, que a família achou por bem mandar para fora estudar. O jovem que ao chegar na Alemanha se filiou à Juventude Socialista e leu Hanna Arendt muito antes de ler Marx.    
     Ainda mora no meu peito o jovem que largou os estudos de Economia para dançar e fazer teatro, que teve o prazer de trabalhar com Augusto Boal quando ele voltou do exílio. Em uma peça, um musical, que se chamava o Corsário do Rei. Tratava dos piratas franceses que com aprovação do rei de França atacavam e pilhavam o Rio de Janeiro e outros lugares, em busca de suas riquezas. Nestes ataques não hesitavam em estuprar as mulheres e roubar dos pobres e necessitados.
     Os piratas continuam por aí. Atacam, ferem e matam se for necessário. Seu ganho pessoal é indireto. Mantendo a lei, mantém o direito de pilhar usando o nome do rei. Rei Alckmin, rei Kassab neste caso. Na época do Carandiru, rei Maluf e o corsário do rei Ubiratan, Depois alçado a deputado pelo povo paulistano, mais tarde morto a tiro. Aqui se faz, aqui se paga escreveram na parede do prédio dele.
     Intervenções sociais sem nada de social, desastrosas e mal preparadas são rotina por aqui desde esta época. Seus exemplos mais recentes são as da Cracolândia e esta do Pinheirinho. Na primeira um dos policiais resumiu bem o que aconteceu. Um câncer que era localizado se espalhou por toda a cidade. Ninguém acabou nem com o vício nem com os viciados. Mas já apareceram os beneficiários da limpeza quase étnica, as empresas querendo os terrenos para a especulação imobilária. Social cleansing, como gosto de chamar, limpeza social.
     Agora, de novo, se limpa o social em nome de benefícios para aqueles que não fazem parte da sociedade. Os 1% que podem atirar, matar e assinar sentenças compradas sem serem prejudicados. Como diz o comandante Toninho, a polícia nem tem que pensar se está certo ou errado. Precisa cumprir as ordens de forma 'positivista' como ele diz. Depois marcar com pulseirinha, cercar e querer dar passagem de volta, para sei lá onde. Para o Brasil dos 99% talvez. Mais adiante você verá alguns vídeos importantes para você formar sua opinião. A minha é clara. Porrada no Nagi Nahas, na juíza cúmplice da bandidagem e nos governantes do Estado de São Paulo.
    Até porque, se tem algum bandido invasor é o mega especulador. O conflito fundiário no Pinheirinho teve seu ponto de partida com dois mistérios que já duram em torno de 30 anos. O primeiro: as terras, que medem mais de 1 milhão de metros quadrados e atualmente são avaliadas em 180 milhões de reais, pertenciam a um casal de alemães assassinados em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Eles não possuíam herdeiros. O segundo mistério: ninguém ainda soube desvendar como a área passou das mãos do Estado, responsável automaticamente pelas terras após a morte do casal, para a gama de propriedades da Selecta, a empresa do megaespeculador Naji Nahas.

Feito pelos agentes sociais:http://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY

Entrevista com a polícia e o advogado:http://www.youtube.com/watch?v=gEcF14xvn_Q

E eu sentado no sofá... Esperando o jogo do Flamengo. Por quanto tempo? O tempo dirá.

Haiti
Caetano Veloso
Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui




terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Sobre o trabalho, a tortura e outras práticas


Entrevista a Christophe de Dejours

"Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal"

01.02.2010 - 10:14 Por Ana Gerschenfeld
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Christophe DejoursChristophe Dejours (foto de Enric Vives-Rubio)
 Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de “qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho. Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.
Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.

Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.

Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.

O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo? 
O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.

Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras? 
Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.

No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.

O que é que mudou nas empresas? 
A organização do trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e ooutsourcing, que tornou o trabalho mais precário.

A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”

Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…

Mas o assédio no trabalho é novo? 
Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.

Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio? 
São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.

Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.

Uma formação para o assédio? 
Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.

Está a descrever um cenário totalmente nazi... 
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio. Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.

Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho? 
É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total.

Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.

E os sindicatos? 
Penso que os sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.

Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas? 
É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.

Quando é que isso aconteceu? 
Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar.

A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções.

Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.

Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho. 
Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.

Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.

Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade? 
Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho.

A Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia.

Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer.

Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.

Aconteceu sem pré-aviso? 
Houve um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa. Mas ela não queria parar, insistia que queria fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela.

Nos testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava sexualmente as mulheres e esta mulher era muito bonita. Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque se tinha recusado a fazer o que ele queria.

O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas? 
Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.

Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países? 
Não há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho. Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em sítio nenhum.

Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo.

Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.

Falou de “qualidade total”. O que é exactamente?
É uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho.

É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.

Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.

Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal. Em diabetologia, por exemplo, os gestores introduziram a obrigação de os médicos fazerem, para cada um dos seus doentes, ao longo de três meses, a média dos níveis de hemoglobina glicosilada A1c [ri-se], que é um indicador da concentração de açúcar no sangue. A seguir, comparam entre si os grupos de doentes de cada médico – é assim que controlam a qualidade dos cuidados médicos. [ri-se].

Só que, na realidade, quando tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e temos de perceber porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que não consegue respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui legumes e não féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não tem dinheiro para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.

Da mesma forma, se um doente diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros fusos horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina. Mais uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.

Mesmo uma central nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar disso.

Ora, quando o ideal se transforma na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se está a obrigar toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho. Deixa de ser possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas. Quando há um incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.

Isso é extremamente grave. 
É. E em medicina passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.

Há muitos suicídios entre os médicos? 
Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.

É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.

Os médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária… 
Foram. Já não são. Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.

O que é importante perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que deixaram de funcionar.

Portanto, as ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo. 
Sim, o termo exacto é dominação; são técnicas de dominação.

Então, é preciso acabar com essas práticas? 
Eu não diria que é preciso acabar com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo a individual. Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o que é quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há avaliações que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser interessante e as pessoas não são contra.

Mas sobretudo, a avaliação não deve ser apenas individual. É extremamente importante começar a concentrar os esforços na avaliação do trabalho colectivo e nomeadamente da cooperação, do contributo de cada um. Mas como não sabemos analisar a cooperação, analisa-se somente o desempenho individual.

O resultado é desastroso. Não é verdade que a qualidade da produção melhorou. A General Motors foi obrigada a alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a Toyota teve de trocar um milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os clientes porque descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total japonesa?

Hoje, nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.

Temos de aprender a pensar o trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o analisar, avaliar – para o cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho colectivo como cooperação, como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar isso no trabalho, ficamos com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a evitar a violência, aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a ouvir o dos outros.

Não haverá por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito empresarial? 
É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.

Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.

Qual é a diferença entre taylorismo e fordismo? 
Taylor inventou a divisão das tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada tarefa, de uma intervenção da direcção, através de um capataz. Há constantemente alguém a vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A palavra-chave é obediência. “Quando eu disser para parar de trabalhar e ir comer qualquer coisa, você vai obedecer. Se concordar, será pago mais 50 cêntimos pela sua obediência.” A única coisa que importa é a obediência. O objectivo é acabar com o ócio, os tempos mortos.

Só muito mais tarde é que Ford introduziu uma nova técnica, a linha de montagem, que é uma aplicação do taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias.

O toyotismo [ou Sistema Toyota de Produção] utiliza um outro método de dominação, o ohnismo [inventado por Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É um método particular que extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito mais subtil que o taylorismo, que apenas estipula que há pessoas que têm de obedecer e outras que mandam.

No ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.

O sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais.

Mas há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício garantido na empresa.

O sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].

O que é o karōshi
É uma morte súbita, geralmente por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas que não apresentam qualquer factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não sofrem de hipertensão, não têm níveis de colesterol elevados, não são diabéticos, não fumam, não são alcoólicos, não tem uma história familiar de AVC. Nada. A único factor que é possível detectar é o excesso de trabalho. Estas pessoas trabalham mais de 70 horas por semana, sem contar as horas passadas nos círculos de qualidade. Ou seja, são pessoas que estão literalmente sempre a trabalhar. Mal param de trabalhar, vão dormir. As descrições de colegas que foram fazer inquéritos no Japão são aterrorizadoras.O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.

As famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.

Mas uma coisa destas não é aplicável na Europa
Não, pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.

Mas acha que poderia acontecer? 
Sim, acho que poderíamos lá chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz, não há uma fatalidade, não é a mundialização que determina as coisas, não é a guerra económica. É perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de outra maneira, e há empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de preservar o “viver juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem puramente de gestão. O que não impede que a tendência seja para a desestruturação um pouco por todo o lado. É difícil resistir-lhe.

Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado? 
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade.

Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas.

E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

O que fizeram? 
Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas. Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.

Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto.

Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.

Versão integral da entrevista publicada no PÚBLICO