terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A droga, os nóia, os preguiçosos e os manipuladores

Os recentes episódios envolvendo a chamada cracolância e a desocupação do Pinheirinho acabaram ganhando novos contornos para mim, ao ler mais uma daquelas aulas de Foucault (2011) às quais me referi em um dos primeiros textos aqui. Para parir estas ideias vou me focar no episódio da desocupação da cracolândia, que ilustra bem estes pensamentos. 
     Na aula de 19 de janeiro de 1983, primeira hora, Foucault relata as aventuras e desventuras, mentiras e verdades de Íon, filho de Xuto, em busca de seus direitos políticos plenos, na velha e  boa Atenas. Como diz o autor francês, Íon "[...] quer ter o direito de falar, de dizer tudo, de falar a verdade e de usar sua fala franca". No entanto, Íon não era um filho puro de Atenas. Naquela época Atenas possuía uma legislação extremamente severa e só era ateniense quem fosse filho de pai e mãe atenienses.
     Mesmo entre os atenienses 'puros' havia disputas sobre quem deveria ter o direito de falar. De um lado havia as opiniões de Cléon, democrata, que pretendia que todos os filhos de Atenas tivessem este direito. De outro lado, a tendência aristocrática era representada por Nícias, para quem o direito de fazer política e ter voz devia ser reservado a uma certa elite.
      Íon tinha lá seus problemas próprios para poder se fazer ouvir, ligados à esta questão de sua origem, à sua falta de 'pureza étnica'. Precisava provar que era filho de filhos de deuses. Estas coisas gregas, trágicas e fortes, inimagináveis em temos atuais, nos quais se expulsam garotos negros de restaurantes e os deixam na esquina.  Para quem quiser saber mais sobre isto, será preciso procurar o texto de Eurípede que se chama exatamente Íon. Ou se informar no site: http://www.afropress.com/noticiasLer.asp?id=%202877
     Independente disto, havia na Atenas da época, na opinião de Eurípedes, três classes de cidadãos. Esta divisão não tem a ver com ter direitos político-econômicos, como ser escravo ou não, ter direito a voto ou não.  Diz respeito à divisão dos cidadãos que são capazes, que poderiam votar e definir os destinos de Atenas. Eurípedes distingue em primeiro lugar os adýnaton, os impotentes, dos dynámemoi, dos que podem alguma coisa. A divisão em três se dá porque estes últimos se dividem em dois grupos: aqueles que se calam e não se ocupam da coisa pública e aqueles que se servem da coisa pública.
     A primeira classe de cidadãos, os impotentes, no caso da cracolância são os nóia. Para quem não sabe este é o termo pelo qual os próprios viciados se denominam, pelos resultados do uso da droga, que provoca delírios persecutórios. São aqueles que, conforme o texto de Eurípedes e como também os expulsos do Pinheirinho, são "Essa multidão incapaz, essa massa de cidadãos que são cidadãos juridicamente de pleno direito, mas que não tem esta espécie de adicional, que caracteriza a autoridade política."
   A segunda classe são as pessoas do bem e de riquezas, que poderiam mudar a história a tudo assistem, alguma com um sorriso silencioso, outras com um choro contido. Um grupo de sóphos (sábios) que são ricos e bem nascidos, mas não se interessam pelos negócios da cidade, não agem para mudar. Até porque foram criados desde pequeninos com a crença de que o privado é que é bonito e o estatal é lento e ineficiente.
     A terceira classe. os ricos e poderosos, pessoas do bem e pragmáticos, servem-se da cidade e também são sóphos (sábios). Também são bem nascidos e manejam a política e a razão, às vezes por meio de marionetes. Como diz o texto: "[...] têm a cidade, possuem a cidade, controlam a cidade e têm suas honrarias." Convencem o grupo anterior de que agem em nome deles, mas na verdade se opõe claramente à categoria precedente, uma vez que não suportam que lhes façam concorrência.
       Por quem você se posiciona no caso da droga? Os pobres sem poder de expressarem sua voz? Os poderosos que se calam e consentem? Ou os poderosos que se servem do logos e da pólis e exploram inclusive a droga, a corrupção e outros vícios?


Referência:


FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011



     

     

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